São Paulo, domingo, 01 de setembro de 2002

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PLANO DIRETOR

Ex-orientador de doutorado do relator Nabil Bonduki diz que paga para ver projeto aprovado sair do papel

Planejar a cidade é "mito", diz urbanista

Luciana Cavalcanti/Folha Imagem
O urbanista Flávio Villaça, para quem os planos diretores servem para defender as minorias ricas


DA REPORTAGEM LOCAL

O professor da FAU-USP Flávio Villaça é um urbanista "sui generis" -despreza planos diretores. Porém, para ele, "sui generis" é acreditar que uma lei aprovada pela Câmara Municipal tenha o poder de planejar a cidade. "Só no Brasil se pensa assim", diz um dos poucos brasileiros a obter o título de Master of City Planning do Georgia Institute of Technology, além do pós-doutorado em Berkeley, Califórnia, Estados Unidos.
Villaça foi também orientador da tese de doutorado em urbanismo do vereador Nabil Bonduki (PT), autor do substitutivo ao Plano Diretor aprovado pela Câmara no dia 23. "Foi um aluno brilhante." A prerrogativa, no entanto, não reduz seu ceticismo. "Pago para ver essas propostas saírem do papel." Leia, a seguir, trechos da entrevista concedida à Folha:

Folha - Que avaliação o sr. faz do processo que culminou na aprovação do Plano Diretor na Câmara?
Flávio Villaça -
O processo representa um avanço, claro. Os únicos planos que despertaram um debate politizado foram o da [ex-prefeita] Luiza Erundina [1989-92] e esse. O da Erundina foi à Câmara, mas não a plenário.

Folha - O plano aprovado é muito diferente do de Erundina?
Villaça -
Muito diferente. Eu acho que o debate tornou o plano atual mais colado à realidade. A primeira versão apresentada pela Secretaria Municipal do Planejamento era só generalidades, como a maioria dos planos diretores feitos no Brasil. Por isso é que não saem da gaveta.

Folha - Segundo a maioria dos urbanistas, São Paulo é um caos porque não foi planejada. O plano serviria para planejá-la.
Villaça -
Essa idéia de que plano diretor é um instrumento fundamental para guiar o crescimento da cidade, que é um instrumento global, essa tese de identificar o plano com o interesse público, isso tudo é a mitologia que se criou em torno do plano. E se criou para esconder o fato de o que está se cuidando, na verdade, é do interesse de uma minoria.

Folha - Não há exemplos de países que planejaram cidades por meio de planos diretores?
Villaça -
Vamos aprofundar a discussão. Como em qualquer aspecto da sociedade brasileira, você não pode se desvincular do fato de que somos uma sociedade injusta, na qual a grande maioria não participa. O Brasil não é só o país de mais alto desnível de renda do mundo, mas também de mais alto desnível político do mundo. Em outros países, não se fantasia plano diretor como no Brasil. Plano com essa conotação que se tenta dar no urbanismo brasileiro, de que é global, de que envolve até segurança pública, saúde, educação, isso não existe fora da América Latina.

Folha - Como europeus e norte-americanos fazem seus planos?
Villaça -
Eles têm planos de obras, feitos pelas autoridades que são efetivamente responsáveis pelas obras. E têm plano de zoneamento. Isso, sim, toda cidade do mundo tem, um plano de controle de uso do solo, que é só isso. Aqui, não. O controle de uso do solo, que é uma coisa que existe há cem anos em São Paulo, é muito menos destacado, menos valorizado, do que o plano.

Folha - Mas quando há debate sobre plano diretor, o setor imobiliário e as associações de bairro centram o debate no zoneamento.
Villaça -
Por isso eu defendo que o plano é uma mitologia. Porque diz que vai cuidar dos interesses globais da cidade só no discurso. Há até urbanistas que acham que o plano deve incluir tudo aquilo que for do interesse da cidade, seja ou não da alçada municipal.
Por exemplo: metrô para Guarulhos deve fazer parte do plano. Plano diretor passa a ser um receptáculo das boas idéias, que é uma concepção completamente sui generis. É um manual do que é bom para a cidade, independentemente de quanto vai custar, a quem cabe executar. São generalidades que jamais sairão do papel.

Folha - O que o plano deveria ter para organizar a cidade?
Villaça -
Isso já é ter uma ambição muito grande. Você achar que um plano para o Estado ou para o país trará mudanças é muito complicado, principalmente se estivermos falando de um plano que extrapole um mandato.
É outra mitologia. Os planos mudam muito. Quem tem plano a longo prazo? O Metrô tem. E daí? Ele muda. A linha da avenida Paulista era para ligar a Vila Prudente à Vila Madalena. Só que o trecho da Vila Prudente sumiu. No último plano que vi, foi para o Sacomã.
Outra coisa é a Lei de Zoneamento, que não tem prazo para vigorar. A primeira Lei de Zoneamento global foi aprovada em 1972. De lá para cá, o que ela já foi alterada...

Folha - As mudanças pontuais no zoneamento feitas agora não são novidade?
Villaça -
De jeito nenhum.

Folha - A Lei de Zoneamento sempre foi alterada pontualmente?
Villaça -
São os conflitos de interesses. O zoneamento, aliás, só lida com os conflitos de vizinhança e com valor de imóvel. Agora, isso só acontece aqui, na zona sudoeste, nos bairros de classe média e alta. Na zona leste, o que houve de mudança de zoneamento ao longo dos últimos 30 anos é desprezível. Nunca teve Gabriel Monteiro da Silva na zona leste.

Folha - Por quê?
Villaça -
Porque lá não tem qualidade de vida a ser preservada e nem conflito de vizinho. Se o cara tiver uma oficina mecânica do lado da casa dele, pode ser até que a valorize. Ele não vai achar ruim.

Folha - Esse perfil de conflito entre ricos não afasta outras parcelas da sociedade do debate do plano?
Villaça -
Mas é sempre isso o que acontece, e não só no Plano Diretor, na Lei de Zoneamento também. Outro dia, na rádio CBN, a [urbanista] Raquel Rolnik citou uma estatística de que 70% da população de São Paulo não sabe o que é zoneamento. E por quê? O zoneamento não tem nada a dizer para eles, não contribui para a qualidade de vida deles, não afeta o valor dos imóveis. Os bairros de classe média e alta são afetados.

Folha - É possível planejar a cidade sem plano diretor?
Villaça -
Se eu estou falando que São Paulo praticamente nunca teve plano, e não se diga que a cidade tem problemas por isso...

Folha - Mas muitas pessoas dizem o contrário, que São Paulo é um caos porque nunca foi planejada.
Villaça -
Mas o que é uma cidade planejada? Brasília é planejada?

Folha - Saiu da prancheta.
Villaça -
Você sabe que dois terços da população de Brasília mora fora do plano piloto, em área igual a qualquer outra cidade brasileira ou pior? Você sabe que a parte planejada de Belo Horizonte abriga um décimo da população da cidade?
Essa é outra mitologia, essa história de planejar. Só vale para os primeiros dez, 20 anos de vida da cidade. Washington [EUA], tirando o miolo, planejado há 200 anos, é igualzinha a qualquer outra cidade americana.
(SÉRGIO DURAN)

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