São Paulo, domingo, 01 de outubro de 2000

Texto Anterior | Índice

GILBERTO DIMENSTEIN

Chega de burrice

Ao desesperar-se num congestionamento em São Paulo, daqueles em que o automóvel não se move nem quando o sinal está verde, o indivíduo deveria saber que, por trás de sua irritação crônica e cotidiana, está uma monumental burrice histórica.
Difícil convencê-lo de que deveria deixar o carro em casa e transferir o estresse ao motorista. Andar de táxi custa caro; e o transporte público é deficiente.
São Paulo só chegou a esse caos porque um seleto grupo de cretinos urbanos decidiu, no início do século, que não deveríamos ter metrô.
A proposta de metrô foi apresentada em 1926, quando a cidade tinha 800 mil habitantes. Imaginava-se, na época, a interligação entre os vários meios de transporte.
Nada original: já havia metrô funcionando em duas cidades da América do Sul, Buenos Aires e Santiago. A primeira linha começou a funcionar em 1863, em Londres, quando ainda convivíamos com a escravidão.
Dando prosseguimento à opção pelo carro, outro seleto grupo de "gênios" aprofundou o estrago e tirou os bondes da rua. O espaço que poderia ser para transporte público não-poluente foi preenchido por automóveis e ônibus.
Como cresce dia-a-dia o número de veículos, a tendência é piorar ainda mais o congestionamento -o que leva técnicos a preverem como inevitável a implantação de pedágios.
Tivessem estimulado o transporte público, São Paulo seria mais agradável. Teria certamente o centro histórico preservado, além de mais áreas de lazer e espaço para pedestres.

 

Por trás da burrice urbana, há uma lógica mais profunda que molda quase a totalidade das cidades brasileiras. Até porque molda a mentalidade nacional: somos uma nação excludente, simbolizada pelo automóvel.
Sabemos que a taxa de democracia de uma cidade se mede pela largura de suas calçadas e pela extensão das áreas de convivência para a maioria da população.
À medida que o espaço do pedestre ia sendo engolido para uso privado, construíamos uma das sociedades mais desiguais do planeta, triste campeã em má distribuição de renda.
É simplesmente previsível que, nessa rota de marginalização, também construíssemos aqui uma das comunidades mais violentas do planeta.
Por ser feia, violenta, congestionada, embora economicamente vibrante e criativa, São Paulo provoca mais temor do que cumplicidade. O paulistano opta por espaços fechados: carros, condomínios, clubes, shopping centers.
Ao voltar-se para dentro, privilegiando a esfera privada, deixou a política municipal de lado. A atitude não foi diferente na imprensa, considerando mais nobres os assuntos federais e estaduais.
Esquecemos o óbvio: o que, de fato, abala todos os dias o humor do cidadão não é a União nem o Estado, mas a cidade. Não moramos nem na União nem no Estado, mas numa cidade poluída, atravancada por congestionamentos e suja.

 

Em maior ou menor grau, os prefeitos, autorizados direta ou indiretamente pelo eleitor, continuaram reféns ou promotores de ações excludentes: abriram-se mais viadutos e alargaram-se mais avenidas, numa privatização do espaço público. Naufragamos na profusão de outdoors.
Viramos cada vez mais periferia, expulsando os moradores para regiões desprovidas de poder público.
Nada mais representativo dessa mentalidade do que terem tirado o palácio do governo do centro e o transferido para o Morumbi, o condomínio da plutocracia.
Ou, então, terem jogado a prefeitura no Ibirapuera, um espaço que só deveria ser dedicado ao lazer -um erro parcialmente consertado.

 

Na onda da exclusão e do desinteresse, não se prestou atenção a quem ia ocupar as vagas na Câmara Municipal.
Só agora vimos com crueza o resultado desse desinteresse: montaram-se quadrilhas de assaltantes no Parlamento municipal.
Na busca de apoio político, entregaram-se as administrações regionais a essas quadrilhas, tornando a cidade ainda mais ingovernável.

 

Chegamos aonde chegamos porque fomos orientados pela mistura de burrice urbana e exclusão social. Isso agravou os inexoráveis impactos das ondas migratórias e da crise da indústria.
E, pior, com o consentimento direto ou indireto do eleitor, seja pelo seu voto seja pela sua omissão.
O que, em essência, está em jogo hoje é mais do que a disputa por um cargo de prefeito ou de vereador.
É a chance de o eleitor agarrar nas mãos a cidade e tentar torná-la um espaço mais agradável e democrático, viabilizando-a para gerar bem-estar social.
Cidade agradável é mais do que prazer. É condição indispensável para atrair e manter os talentos, as pessoas que produzem, inovam e renovam, transformando inteligência em riqueza.

 

PS - Como estou convencido de que a temática urbana entrou para ficar na agenda do paulistano e cada vez se criam soluções de revitalização das cidades, aposto que caminhamos para uma situação que hoje parece impensável.


E-mail - gdimen@uol.com.br


Texto Anterior: Curso mostra avanços no tratamento
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.