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PASQUALE CIPRO NETO
"E eu não vou sê-lo"
Anteontem, em veemente intervenção na CPI
da Terra, a senadora Ana Júlia
Carepa (PT-PA) proferiu estas peremptórias palavras, enquanto
rasgava o relatório paralelo, do
deputado Abelardo Lupion (PFL-PR ): "Eu disse no início que não
seria cúmplice de assassinato e
não vou sê-lo. Muito obrigada!".
Rápidos no gatilho, alguns leitores escreveram para perguntar
se, por ser mulher, a senadora não
deveria ter dito "E eu não vou sê-la". Não e não, caros leitores. O
que temos aí é o pronome demonstrativo neutro "o", transformado em "lo" porque se agrega
encliticamente à forma verbal
"ser", terminada em "r" (suprime-se o "r" do verbo e transforma-se o pronome "o" em "lo").
O demonstrativo "o" pode equivaler a "isto", "isso" ou "aquilo",
e é justamente por isso que é neutro, o que significa que não varia.
Quando se diz algo como "O que
ela fez é perfeitamente compreensível", emprega-se o "o" com valor
de "isso" ("Isso que ela fez é perfeitamente compreensível"). Numa frase como "Ela diz que sou irrecuperável, mas sei que não sou
isso", pode-se substituir "isso" por
"o" ("Ela diz que sou irrecuperável, mas sei que não o sou").
Nos exemplos que acabamos de
ver, os pronomes "isso" e "o" substituem o adjetivo "irrecuperável",
que, por acaso, é uniforme (igual
para o masculino e para o feminino), o que, por sinal, ocorreu também na frase da senadora (que
empregou o vocábulo "cúmplice",
uniforme). Se tivéssemos um vocábulo de forma feminina, nada
mudaria: "Eu disse no início que
não seria leviana e não vou sê-lo".
Como e vê, a emoção e a veemência não impediram a articulada parlamentar de se expressar
em português formal e de empregar uma construção um tanto insólita nos dias de hoje. Quem disse que não se aprende português
com os nossos parlamentares?
Convém lembrar que o pronome demonstrativo "o" pode substituir toda uma oração, o que se
vê nestes memoráveis versos de
"Ainda Uma Vez - Adeus", de
Gonçalves Dias: "Erro foi, mas
não foi crime, / Não te esqueci, eu
to juro: / Sacrifiquei meu futuro, /
vida e glória por te amar".
Em "Não te esqueci, eu to juro",
o demonstrativo "o" (que aqui
aparece fundido com o pronome
oblíquo "te") substitui a oração
"Não te esqueci". Em outras palavras, os versos de Gonçalves Dias
equivalem a "Não te esqueci, eu te
juro isso" (ou "Não te esqueci, eu
te juro que não te esqueci").
Numa passagem anterior do
mesmo poema, encontramos este
verso: "Que me enganei, ora o vejo". Mais uma vez, o pronome demonstrativo "o" substitui toda
uma oração ("que me enganei").
Por falar em pronomes, seria
um desperdício não aproveitar o
poema de Gonçalves Dias para
falar do emprego do oblíquo com
valor de possessivo, o que se vê
nesta passagem: "Nadam-te os
olhos em pranto, / Arfa-te o peito...". Em suas duas ocorrências, o
pronome "te" equivale a "teus" e
"teu", respectivamente ("Nadam
os teus olhos em pranto, / Arfa o
teu peito..." -na ordem direta,
teríamos "Os teus olhos nadam
em pranto, / O teu peito arfa...").
Voltando à intervenção da senadora paraense na CPI da Terra, convém salientar que seu pronunciamento terminou com um
femininíssimo (e mais que adequado) "Muito obrigada!". É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail - inculta@uol.com.br
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