São Paulo, quinta-feira, 01 de dezembro de 2005

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PASQUALE CIPRO NETO

"E eu não vou sê-lo"

Anteontem, em veemente intervenção na CPI da Terra, a senadora Ana Júlia Carepa (PT-PA) proferiu estas peremptórias palavras, enquanto rasgava o relatório paralelo, do deputado Abelardo Lupion (PFL-PR ): "Eu disse no início que não seria cúmplice de assassinato e não vou sê-lo. Muito obrigada!".
Rápidos no gatilho, alguns leitores escreveram para perguntar se, por ser mulher, a senadora não deveria ter dito "E eu não vou sê-la". Não e não, caros leitores. O que temos aí é o pronome demonstrativo neutro "o", transformado em "lo" porque se agrega encliticamente à forma verbal "ser", terminada em "r" (suprime-se o "r" do verbo e transforma-se o pronome "o" em "lo").
O demonstrativo "o" pode equivaler a "isto", "isso" ou "aquilo", e é justamente por isso que é neutro, o que significa que não varia. Quando se diz algo como "O que ela fez é perfeitamente compreensível", emprega-se o "o" com valor de "isso" ("Isso que ela fez é perfeitamente compreensível"). Numa frase como "Ela diz que sou irrecuperável, mas sei que não sou isso", pode-se substituir "isso" por "o" ("Ela diz que sou irrecuperável, mas sei que não o sou").
Nos exemplos que acabamos de ver, os pronomes "isso" e "o" substituem o adjetivo "irrecuperável", que, por acaso, é uniforme (igual para o masculino e para o feminino), o que, por sinal, ocorreu também na frase da senadora (que empregou o vocábulo "cúmplice", uniforme). Se tivéssemos um vocábulo de forma feminina, nada mudaria: "Eu disse no início que não seria leviana e não vou sê-lo".
Como e vê, a emoção e a veemência não impediram a articulada parlamentar de se expressar em português formal e de empregar uma construção um tanto insólita nos dias de hoje. Quem disse que não se aprende português com os nossos parlamentares?
Convém lembrar que o pronome demonstrativo "o" pode substituir toda uma oração, o que se vê nestes memoráveis versos de "Ainda Uma Vez - Adeus", de Gonçalves Dias: "Erro foi, mas não foi crime, / Não te esqueci, eu to juro: / Sacrifiquei meu futuro, / vida e glória por te amar".
Em "Não te esqueci, eu to juro", o demonstrativo "o" (que aqui aparece fundido com o pronome oblíquo "te") substitui a oração "Não te esqueci". Em outras palavras, os versos de Gonçalves Dias equivalem a "Não te esqueci, eu te juro isso" (ou "Não te esqueci, eu te juro que não te esqueci").
Numa passagem anterior do mesmo poema, encontramos este verso: "Que me enganei, ora o vejo". Mais uma vez, o pronome demonstrativo "o" substitui toda uma oração ("que me enganei").
Por falar em pronomes, seria um desperdício não aproveitar o poema de Gonçalves Dias para falar do emprego do oblíquo com valor de possessivo, o que se vê nesta passagem: "Nadam-te os olhos em pranto, / Arfa-te o peito...". Em suas duas ocorrências, o pronome "te" equivale a "teus" e "teu", respectivamente ("Nadam os teus olhos em pranto, / Arfa o teu peito..." -na ordem direta, teríamos "Os teus olhos nadam em pranto, / O teu peito arfa...").
Voltando à intervenção da senadora paraense na CPI da Terra, convém salientar que seu pronunciamento terminou com um femininíssimo (e mais que adequado) "Muito obrigada!". É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail - inculta@uol.com.br


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