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São Paulo, domingo, 02 de fevereiro de 2003

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DANUZA LEÃO

Mudando as regras

Ninguém conhece ninguém, e quando a gente acha, às vezes, que conhece, os fatos se encarregam de mostrar que não era nada daquilo.
As pessoas mais simpáticas, educadas, leais, inteligentes e honestas não imaginam que sejam capazes também de gritar, avançar no pescoço, roubar, trair e até matar. Sabe aquele crime horrível que você leu no jornal? Pode ter sido premeditado, claro, mas também é possível que até aquela manhã o assassino nunca tivesse pensado em matar ninguém -só que matou. É, a gente não se conhece, mas tem a pretensão de conhecer o outro.
Quanto mais próximas são as pessoas, mais conseguem nos surpreender. Pais não conhecem os filhos -e vice-versa -, irmãos não conhecem irmãos, e quando existe amor entre homem e mulher, é pior ainda, pois, enquanto ele existe, as criaturas se transformam em outras -aliás, bem diferentes.
Mas a família não se reúne todo fim de ano porque todos se amam? Se se amam, pressupõe-se que se conheçam bem -afinal, ninguém ama um estranho. Não: eles se amam porque ficou combinado que deviam se amar, e datas foram estipuladas para que esse amor seja demonstrado como merece. Mas como a hora é de mudanças, que tal tentar, além de nos amarmos, também nos conhecermos uns aos outros, para nos amarmos mais ainda ou não perder mais tempo?
Vamos lá: convoque uma reunião familiar para maio ou junho, quando a temperatura deverá estar mais amena -calor e família, juntos, não costumam dar certo. Marque para um sábado, no fim da tarde, e avise: que venham almoçados. Quando todos tiverem chegado, explique que o objetivo do encontro é aprofundar as relações familiares, o que inicialmente vai encher de júbilo os corações mais ingênuos; mal sabem eles.
É preciso que haja regras: os celulares terão que ser desligados, e a bebida deverá rolar fartamente, para soltar as línguas. Um dos presentes será sorteado para começar a contar a história de sua vida, com direito a perguntas dos participantes e a obrigação de responder a verdade, claro.
Detalhe: sexo, drogas e rock'n'roll serão assuntos obrigatórios.
Já pensou ouvir sua mãe contar como foi sua vida quando jovem, se namorou muito, se estava mesmo apaixonada quando se casou com seu pai, se alguma vez teve vontade de traí-lo -e se traiu-, isso com ele ao lado, escutando tudo? Depois será a vez dele contar sua história; algum filho conhece a história verdadeira de seu pai, além da oficial? Os sapos que teve de engolir, as humilhações que sofreu, de que sonhos teve que abrir mão para se firmar na vida, tudo pela família -pela família ou por ambição?-, se valeu? Esses fatos, que os mais próximos costumam ignorar, são contados com facilidade a um companheiro de viagem que nunca mais se vai ver, num avião indo para a Austrália; mas é assim que deve ser? Será?
Quanta emoção saber das loucuras que fizeram, das dezenas de vezes que os corações bateram, o que sofreram. E depois vem a vez dos filhos: por acaso algum pai ou alguma mãe tem noção da vida oculta dos seus? Quando um dia ouviram falar de alguma coisa menos tradicional acontecida 25 anos antes com um deles, a vontade foi de sumir para não ouvir. E as queixas em relação a você, mãe, quando eram pequenos? Não há prescrição quando existem sentimentos envolvidos, e o coração é covarde quando se trata dos nossos.
As famílias são sempre iguais e gostam de rotular: segundo elas, A é o mau-caráter, B, o bonzinho, C, a vagabunda, D, o drogado, E, o vitorioso, F, o que nunca vai dar pra nada, e por aí vai. Mas depois de uma reunião dessas você vai, no mínimo, começar a entender como e por que cada um se tornou aquilo que é hoje.
Para promover ou apenas participar desse encontro, é preciso ter coragem, porque depois dele as relações vão mudar, isso é certo: para melhor, para pior ou para nada.
E você, que foi sempre considerada a corajosa da família, vai encarar?

E-mail - danuza.leao@uol.com.br


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