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DANUZA LEÃO
Mudando as regras
Ninguém conhece ninguém,
e quando a gente acha, às
vezes, que conhece, os fatos se encarregam de mostrar que não era
nada daquilo.
As pessoas mais simpáticas,
educadas, leais, inteligentes e honestas não imaginam que sejam
capazes também de gritar, avançar no pescoço, roubar, trair e até
matar. Sabe aquele crime horrível
que você leu no jornal? Pode ter
sido premeditado, claro, mas
também é possível que até aquela
manhã o assassino nunca tivesse
pensado em matar ninguém -só
que matou. É, a gente não se conhece, mas tem a pretensão de conhecer o outro.
Quanto mais próximas são as
pessoas, mais conseguem nos surpreender. Pais não conhecem os
filhos -e vice-versa -, irmãos
não conhecem irmãos, e quando
existe amor entre homem e mulher, é pior ainda, pois, enquanto
ele existe, as criaturas se transformam em outras -aliás, bem diferentes.
Mas a família não se reúne todo
fim de ano porque todos se
amam? Se se amam, pressupõe-se
que se conheçam bem -afinal,
ninguém ama um estranho. Não:
eles se amam porque ficou combinado que deviam se amar, e datas
foram estipuladas para que esse
amor seja demonstrado como
merece. Mas como a hora é de
mudanças, que tal tentar, além
de nos amarmos, também nos conhecermos uns aos outros, para
nos amarmos mais ainda ou não
perder mais tempo?
Vamos lá: convoque uma reunião familiar para maio ou junho, quando a temperatura deverá estar mais amena -calor e família, juntos, não costumam dar
certo. Marque para um sábado,
no fim da tarde, e avise: que venham almoçados. Quando todos
tiverem chegado, explique que o
objetivo do encontro é aprofundar as relações familiares, o que
inicialmente vai encher de júbilo
os corações mais ingênuos; mal
sabem eles.
É preciso que haja regras: os celulares terão que ser desligados, e
a bebida deverá rolar fartamente,
para soltar as línguas. Um dos
presentes será sorteado para começar a contar a história de sua
vida, com direito a perguntas dos
participantes e a obrigação de
responder a verdade, claro.
Detalhe: sexo, drogas e
rock'n'roll serão assuntos obrigatórios.
Já pensou ouvir sua mãe contar
como foi sua vida quando jovem,
se namorou muito, se estava mesmo apaixonada quando se casou
com seu pai, se alguma vez teve
vontade de traí-lo -e se traiu-,
isso com ele ao lado, escutando
tudo? Depois será a vez dele contar sua história; algum filho conhece a história verdadeira de seu
pai, além da oficial? Os sapos que
teve de engolir, as humilhações
que sofreu, de que sonhos teve que
abrir mão para se firmar na vida,
tudo pela família -pela família
ou por ambição?-, se valeu? Esses fatos, que os mais próximos
costumam ignorar, são contados
com facilidade a um companheiro de viagem que nunca mais se
vai ver, num avião indo para a
Austrália; mas é assim que deve
ser? Será?
Quanta emoção saber das loucuras que fizeram, das dezenas de
vezes que os corações bateram, o
que sofreram. E depois vem a vez
dos filhos: por acaso algum pai ou
alguma mãe tem noção da vida
oculta dos seus? Quando um dia
ouviram falar de alguma coisa
menos tradicional acontecida 25
anos antes com um deles, a vontade foi de sumir para não ouvir.
E as queixas em relação a você,
mãe, quando eram pequenos?
Não há prescrição quando existem sentimentos envolvidos, e o
coração é covarde quando se trata dos nossos.
As famílias são sempre iguais e
gostam de rotular: segundo elas,
A é o mau-caráter, B, o bonzinho,
C, a vagabunda, D, o drogado, E,
o vitorioso, F, o que nunca vai dar
pra nada, e por aí vai. Mas depois
de uma reunião dessas você vai,
no mínimo, começar a entender
como e por que cada um se tornou aquilo que é hoje.
Para promover ou apenas participar desse encontro, é preciso ter
coragem, porque depois dele as
relações vão mudar, isso é certo:
para melhor, para pior ou para
nada.
E você, que foi sempre considerada a corajosa da família, vai
encarar?
E-mail - danuza.leao@uol.com.br
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