São Paulo, domingo, 02 de maio de 2004

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SAÚDE

Médicos apontam necessidade de tratamento com terapia e antidepressivos; doença atinge 5% das crianças no mundo

Depressão infantil ainda é encarada como exagero

LULIE MACEDO
DA REVISTA

No início parecia manha. André*, 9, deu para fazer escândalo e evitar a escola. "Não tenho força", dizia, chorando. Não queria brinquedos, TV nem amigos. Brigava à toa, tudo o irritava. "É fase, coisa da idade", pensava a mãe, Márcia*. Ou falta do pai, de quem se separou há dois anos. Até que, na escola em que dá aulas, recebeu uma ligação de casa, à noite:
- Mãe, volta agora? Estou triste, com vontade de morrer.
Márcia se assustou. Levou André à psiquiatra. Saiu de lá com uma prescrição médica quase tão incomum quanto papo de morte em boca de criança: terapia e dez gotas diárias de antidepressivo.
"Quando conto isso, as pessoas sempre acham absurdo. Primeiro se espantam porque não acreditam que a doença possa aparecer em crianças, depois dizem que dar antidepressivo para um menino de nove anos é exagero."
Embora a depressão tenha perdido parte do estigma, ao menos duas crenças continuam fortes: que se trata de mal exclusivo da maturidade e que suas raízes estão no estresse dos tempos modernos. Quanto a esta última afirmação, o problema é quase tão antigo quanto o homem. E as estimativas calculam em 5% as crianças deprimidas no mundo.
Reconhecida no meio médico há apenas 20 anos, a depressão infantil é uma variação da adulta, com características e sintomas parecidos, mas que ainda permanece um mistério para pais, professores e boa parte dos médicos.
A americana FDA (agência que regula alimentos e remédios) alertou sobre o risco de o antidepressivo fazer aflorar tendências suicidas no início do tratamento, especialmente em crianças e jovens.
É um ponto quase ignorado: o mundo do Prozac chegou à infância, mas com os mesmos antidepressivos usados por pais e avós. Ninguém sabe, no Brasil, quantas crianças estão sendo medicadas, mas sabe-se que cresce o número de deprimidos infantis graves.
"Nem me assustei quando a psiquiatra falou que ela ia tomar antidepressivo, daria qualquer coisa para tirar minha filha daquele sofrimento", conta a empresária Luciana*, mãe de Daniela*, 10, há dez meses com depressão grave.
É comum ainda os pais se sentirem culpados. "Os pais devem saber que filho deprimido não é resultado de defeitos deles nem necessariamente reflexo de falta de habilidade para educar", diz o escritor Andrew Solomon, portador de depressão grave e autor de um estudo premiado sobre a doença.

Desde o berço
A doença afeta até os bebês -se manifesta fisicamente, com alterações na coordenação motora, distúrbios do sono, falta de apetite, apatia e choro constante. A queixa física também surge em crianças maiores, mas, diferentemente dos adultos, ela fica nervosa e agitada, em vez de triste.
Acredita-se que a depressão é provocada por uma somatória de fatores, que inclui temperamento, experiências de vida e, cada vez mais, predisposição genética. Mas as dúvidas se estendem até a profissionais de saúde. Quando Márcia foi pedir licença de trabalho para cuidar de André, o clínico-geral a olhou com desconfiança: "Como é possível um menino de nove anos estar com depressão?".
A questão é que, na cabeça de adultos, tristeza e infância não combinam. "Basta você se lembrar da sua infância. Quem nunca se preocupou em ser aceito pelo grupo, recuperar nota vermelha ou corresponder às expectativas dos pais?", diz a psiquiatra infantil Paramjit T. Joshi, coordenadora da divisão de psiquiatria do Children's National Medical Center, um dos principais hospitais pediátricos dos EUA.
E como separar a mudança típica da idade da patológica? "Uma forma é comparar a mudança de comportamento com o que era anteriormente a criança", sugere Lee Fu I, do departamento de psiquiatria infantil do Hospital das Clínicas paulistano. "Se a criança era extrovertida e de repente se isola, pode haver um sinal."
Lidera a lista de situações familiares que "disparam" uma crise depressiva a briga dos pais, seguida por perdas (de pessoas, animais, coisas) e situações que expõem a criança a questões que sua faixa etária não consegue entender: problema financeiro da família, separação paterna, solidão e necessidade de se virar sozinhas.
Mas há o gatilho químico, uma "falha" no equilíbrio dos neurotransmissores das sensações de prazer e bem-estar. Essa falha seria transmitida geneticamente, ativada por fatores externos.
Ou seja: predisposição genética conta, mas deve haver combinação entre a parte biológica, temperamento e experiência de vida.
A escola é fundamental no diagnóstico. "Quase sempre há queda no rendimento escolar no quadro depressivo, principalmente em disciplinas que exigem atenção, concentração e memorização", diz a psicóloga Miriam Cruvinel, doutoranda pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
Importam também os pediatras e médicos de família, já que as queixas físicas sem causa comprovada estão entre os sintomas freqüentes da depressão infantil.
Para a psiquiatra Lee Fu, o médico de família é o alvo do alerta da FDA. Como o sistema de saúde dos EUA é estruturado em torno deles (nem sempre preparados para diagnosticar a depressão infantil), eles acabam receitando antidepressivos sem calcular o risco de efeitos indesejados.

Medo
Até profissionais de saúde mental ainda têm medo de falar sobre suicídio com a criança e os pais. "O remédio não põe idéia suicida onde ela não existe. Mas se aquilo já está lá, latente, o antidepressivo pode trazer à tona", diz Lee Fu.
Mark Riddle, chefe da divisão de psiquiatria de crianças e adolescentes do hospital Jonhs Hopkins (EUA), também defende a medicação: "A maioria dos efeitos colaterais ocorre no início do tratamento, e uma hipótese para isso é que a energia física costuma se restabelecer antes do intelecto, portanto o paciente pode acabar recuperando vitalidade suficiente para tomar uma atitude, caso já exista uma idéia suicida."
Mas é preciso dizer que, sem tratamento, a doença deixa marcas a longo prazo. "A criança está em formação, e, se parte da infância é eclipsada pela depressão, ela se torna propensa a incorporar para sempre esse estado de humor", diz Andrew Solomon.


* Nomes trocados para preservar os personagens infantis


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