São Paulo, sábado, 2 de maio de 1998

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VIDAS SECAS
Para juristas, problemas sociais deveriam ser resolvidos antes de a Justiça ser chamada a reprimir os saques
Juristas criticam governo e defendem saque

Associated Press
Moradores enchem baldes com água em um acampamento de sem-terra próximo a Afogados da Ingazeira (PE)


AUGUSTO GAZIR
de Buenos Aires


O ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Sepúlveda Pertence e o presidente da AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros), Luiz Fernando de Carvalho, criticaram ontem, em Buenos Aires, a situação social do país. Segundo eles, o governo deveria resolver os problemas antes de usar a Justiça para reprimir os saques. "O furto famélico é legítimo", disse Pertence.
O ministro e Carvalho, que participam na capital argentina da reunião do grupo ibero-americano da União Internacional dos Magistrados, fizeram a afirmação em referência à situação do Nordeste. Anteontem, por exemplo, 200 trabalhadores rurais de Santa Luzia (interior da Paraíba), que sofre com a seca, saquearam o depósito de merenda de uma escola.
"No caso de flagelo de real e notória necessidade dessas populações atingidas, os juízes brasileiros não se prestarão ao papel de carrasco da fome e da miséria", disse Carvalho, presidente de entidade que reúne 14 mil juízes, entre ativos e aposentados.
Para Sepúlveda Pertence, "as autoridades brasileiras precisam se convencer de que há problemas em que a polícia e o direito penal são de toda a impotência".
Estado de necessidade
Segundo Luiz Fernando de Carvalho, é um "absurdo" usar a Justiça como repressora, quando não se resolvem os problemas sociais, como o desemprego.
"Não estimulamos os saques, mas não vamos fazer o discurso do terror e da repressão. Os juízes brasileiros estão fechados com essa posição", disse. Pertence concordou com Carvalho. Ele classificou como "eterna" a seca no Brasil. "É vergonhosa a nossa incapacidade para lidar com esse problema cíclico: a seca no Nordeste."
Carvalho lembrou que, segundo o Código Penal, não é crime o furto cometido por "estado de necessidade". "Ninguém invade o armazém para levar cosméticos ou uísque, mas carne e farinha."
Para Paulo Medina, presidente da Federação Latino-Americana de Magistrados, o furto motivado por fome é legítimo, mas estimular e incitar grupos a realizar saques é crime. Ele disse que os juízes não devem assumir papel de liderança na discussão sobre os saques, para não estimular a ação.
Segundo ele, o problema dos saques no Brasil pode ser discutido durante o encontro dos magistrados da América Latina, Portugal e Espanha, quando se abordar o tema de direitos humanos.
"Os juízes não devem defender os saques, e sim condenar as condições sociais que produzem isso", afirmou Medina.
Sepúlveda Pertence ironizou a polêmica entre o presidente Fernando Henrique Cardoso e a Igreja Católica. FHC chamou de demagógica a atitude de bispos e lideranças de movimentos sociais que defenderam os saques.
"A democracia tem, inevitavelmente, uma dose de bate-boca." Carvalho disse que a ação dos juízes não pode ser confundida com demagogia. "Se, na visão de alguém, isso é demagogia, para nós é cumprimento do dever."



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