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URBANIDADE
Um som estrangeiro em Sampa
GILBERTO DIMENSTEIN
COLUNISTA DA FOLHA
Quando está na fazenda
e quer esquecer as preocupações, Mônica Falcone dirige
sozinha um jipe pelas estradas de
terra ouvindo música em alto volume. A combinação de paisagem bucólica, vento, cheiro de
mato, som e velocidade consegue
deixá-la relaxada. Pela primeira
vez, na quinta passada, resolveu
testar essa terapia automobilística pelas ruas congestionadas de
São Paulo. Foi a última vez.
Como a paisagem jamais seria
remotamente parecida com a do
campo e não estava disposta a ficar de janela aberta, sobrou-lhe
então pilotar o jipe Hilux, da Toyota, utilizado apenas para viajar até a fazenda. Colocou para
tocar musicas românticas cantadas por Caetano Veloso.
Entretida com as melodias, não
notou dois jovens, no semáforo,
apontando-lhe um revólver calibre 38 e exigindo que abrisse o vidro. Desde que voltara da Itália,
onde morou por 20 anos e decidiu trocar o jornalismo pela culinária, Mônica sentia-se razoavelmente protegida. "Depois de
tanto tempo morando no exterior, fui me sentir mesmo estrangeira em minha própria terra."
A cena teve um toque de realismo mágico, tudo acompanhado
pela suavidade musical de Caetano. Os dois só a tratavam, gentilmente, por senhora. "A senhora não se preocupe, nunca mataria ninguém. Meu pai morreu assassinado, sei como isso estraga
uma família", disse um, incomodado com os prantos. Ela, maternal, disse que tinha um filho da
idade deles e recomendou: "Nunca mate ninguém, mais cedo ou
mais tarde pegam você".
Os jovens não conheciam as
ruas e Mônica estava nervosa. A
caminho da marginal Pinheiros,
erraram o caminho. "A senhora
tem o seguro do carro?", o rapaz
que pilotava quis saber. "Sei lá,
por quê?" Não queriam levar dinheiro nem cartões, só o carro.
Ele disse que ficaria mais tranqüilo se o jipe estivesse no seguro.
O carro, avisou, seria desmanchado ou mudaria de país. Nunca mais seria recuperado. De tão
visado, esse tipo de jipe não é
aceito por algumas seguradoras.
Mônica foi deixada numa esquina, nas proximidades de Pinheiros. Quando saía, aliviada,
do carro, ouviu a última pergunta do rapaz ao volante: "Quem
está cantando é o Caetano?".
Diante da resposta positiva, ele
sorriu e cumprimentou: "A senhora tem muito bom gosto".
Desorientada, amedrontada e
sozinha em uma esquina, sem o
celular, Mônica viu o jipe se distanciar, com os jovens ouvindo
Caetano interpretar músicas
americanas no mais recente trabalho, "A Foreign Sound" (um
som estrangeiro).
E-mail - gdimen@uol.com.br
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