São Paulo, segunda-feira, 02 de agosto de 2010

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ENTREVISTA DA 2ª ANTÔNIO ARAÚJO

Relação com a cidade tem de ser menos anestesiada

DIRETOR QUE JÁ ENCENOU EM PRESÍDIO, IGREJA, HOSPITAL E ATÉ NO RIO TIETÊ PREPARA PEÇA SOBRE O BOM RETIRO, BAIRRO TRADICIONAL DE SÃO PAULO

LETICIA DE CASTRO
DE SÃO PAULO

No início do longo trabalho de elaboração do próximo espetáculo do Teatro da Vertigem -sobre o bairro paulistano do Bom Retiro- , que deve estrear no segundo semestre de 2011, o diretor Antônio Araújo, 44, fala sobre o processo de criação e a relação do grupo com a cidade nesta entrevista à Folha.

 

FOLHA - O que no Bom Retiro chamou a atenção do grupo?
ANTÔNIO ARAÚJO -
A questão dos fluxos migratórios nos interessa bastante. Judeus sendo substituídos por coreanos, depois por bolivianos. O fato de ser um bairro colado à rodoviária e à estação de trem fez dele um lugar onde as pessoas chegavam e ficavam. Vamos saber o que incorporar disso depois da pesquisa de campo.

Como é a pesquisa de campo?
Vai desde estar no lugar, investigar, mapear, até encontrar pessoas, conversar para coletar a memória oral. No Bom Retiro, queremos promover oficinas de iluminação, dramaturgia e figurino, para a população local, como em todos os trabalhos.

Colado ao Bom Retiro está a cracolândia, onde a prefeitura realiza um projeto de revitalização chamado Nova Luz, que deve mudar a paisagem e a ocupação da área. Você tem acompanhado essa questão? O que acha do projeto?
Pela proximidade com o Bom Retiro, quero investigar mais. O que chama a atenção é que, por enquanto, só mudaram o problema de lugar. No ano passado, vi, próximo à estação Julio Prestes, uma rua inteira tomada [por viciados], à luz do dia. O que me dá medo na palavra "revitalização" é que, às vezes, ela esconde processos de gentrificação e higienização. Fico me perguntando como está sendo pensada a integração das pessoas que moram lá. Colocar as pessoas de lado reforça a exclusão.

A trajetória do Teatro da Vertigem sempre esteve ligada à cidade de São Paulo. O que o atrai nesse tipo de encenação, de performance urbana?
O primeiro trabalho, ["Paraíso Perdido"] na igreja Santa Ifigênia, causou muita discussão sobre o lugar do teatro dentro da cidade. A ideia de um teatro que possa ocupar, invadir, atravessar a cidade é algo que me interessa. A chance de levar o teatro para outros lugares e trazer luz para espaços da cidade que as pessoas não notam e discutir o poder que o teatro tem de interferir na cidade.

Que tipo de interferência o teatro pode ter na cidade e na relação do cidadão com o espaço urbano?
Eu acho que a gente consegue provocar ruídos nessa relação, desestabilizar. Um exemplo concreto: você entrar no rio Tietê [onde foi encenado "BR-3"], que é um lugar aonde as pessoas nunca vão, e olhar a marginal do ponto de vista do rio muda o seu olhar sobre a cidade. Você instaura uma outra perspectiva. Talvez para algumas pessoas isso mude muito, para outras mude menos. Mas acho que, no mínimo, você cria uma perturbação, um distúrbio. Eu estou interessado nisso: reencontrar a relação com a cidade, tirar os vícios, deixar a relação [do público] com a cidade menos anestesiada.

E qual é o papel da cidade no trabalho do grupo?
A cidade é um território que a gente ocupa. A ideia do trabalho de pesquisa e do espetáculo é que você possa ter a cidade como campo de experiência para nós, como artistas, e para quem vai assistir e participar. O ponto de partida é a conexão com São Paulo. No momento de criação, a ligação é muito forte.
No "Livro de Jó", a ideia [de abordar a Aids] tinha a ver com o momento da cidade. Em 1993, São Paulo era a cidade número um em mortes por Aids na América Latina. Por que [montar "Apocalipse 1,11"] no Carandiru? O massacre dos 111 era ferida, tinha a ver com um momento apocalíptico de São Paulo.

Como vocês escolhem os espaços de encenação?
A partir das pesquisas fica mais claro o lugar que pode ajudar na discussão que a gente quer fazer. No "BR-3", por exemplo, a gente queria discutir a identidade nacional. Percebemos que o elemento da destruição era forte. Aí, veio a ideia do rio destruído da cidade [o Tietê].

Durante a preparação de "Apocalipse 1,11", vocês fizeram pesquisas no presídio do Carandiru, mas não conseguiram permissão do governo para encenar lá. Você acha que existe uma compreensão do poder público a respeito do tipo de trabalho de vocês?
Depende de quem você tem pela frente. Em alguns casos encontramos pessoas que não entendiam nada. Já recorremos a CET, PM, Secretaria de Administração Penitenciária, de Obras, subprefeitura. E não só a órgãos públicos. No "Livro de Jó", percorremos hospitais, falamos com administradores. Nos ofereciam o auditório. Quando a gente dizia que queria o hospital, era um susto.
Fora do Brasil também tivemos esse tipo de dificuldade para ocupar espaços públicos e não convencionais. A burocracia é imensa.


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