São Paulo, sábado, 02 de setembro de 2000


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LETRAS JURÍDICAS

Mazelas e pessimismo no Brasil

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O suicídio de Getúlio Vargas, em 24 de agosto de 1954, coincidiu com meu último ano no curso de direito, na velha academia do Largo de São Francisco. Naquela manhã, há 46 anos, era meu turno de locutor na rádio Gazeta, cujo slogan era "emissora de elite", pois privilegiava a música de concerto, com sofisticadíssimos programas. Li para os ouvintes a carta-testamento de Getúlio, com adequada voz soturna, mas também mergulhado em meu próprio pessimismo e na dúvida sobre o que o destino reservava ao Brasil. E também a mim mesmo. O país superaria a crise?
Em outro agosto, em 1961, eu -procurador-geral da Justiça do Distrito Federal- chegava no dia 25 ao Ministério da Justiça, em Brasília, quando o ministro Oscar Pedroso Horta saiu para levar outra carta, a da renúncia de Jânio Quadros, ao Congresso Nacional, então presidido por Auro Soares de Moura Andrade. Foi um turbilhão, com dúvidas sobre o que o destino reservava para o Brasil, depois das esperanças que Jânio despertara, recebendo votação extraordinária para o tempo. O país superaria a crise?
Nesses dois momentos da história, houve justos motivos para duvidar das condições de sobrevivência ordeira deste país, com políticos sérios que o levassem ao progresso, à superação de suas dificuldades.
A turma de 1955 da Faculdade de Direito foi paraninfada pelo professor Basileu Garcia três anos depois de sua aposentadoria, em demonstração eloquente do prestígio do mestre. Do discurso que ele então pronunciou, tenho uma cópia, que me foi dada pelo advogado Pedro Cornacchione, da qual extraio dois trechos impressionantes. Disse Basileu, dando a visão dominante daquele período: "as mazelas que infelicitam a nossa pátria, as deturpações do regime democrático, o êxito prodigioso dos maus, a miséria excessiva dos desprotegidos, vergonhosa para as elites, o tripúdio sobre as ilusões dos humildes pelo acúmulo de descalabros cada vez mais alarmantes são derrotas infligidas ao espírito jurídico, ao Direito, que representamos, o qual é harmonia e disciplina".
Mais adiante, a contundência do mestre agravou-se: "Mas, numa época em que os representantes do povo, que deveriam ser os porta-vozes das aspirações legítimas, tripudiam sobre as prerrogativas do poder a que foram levados, tentando suprimir-lhe a liberdade de crítica, dão o exemplo de insensibilidade ante o infortúnio dos pequeninos, satisfazendo preferencialmente os seus próprios apetites à custa dos depauperados Orçamentos nacionais, e querem rodar em luxuosas limusines pela rua da amargura em que reside o desconforto dos seus representados, convenhamos que a estrela do Direito empalidece em face do surto ofuscante da ilegalidade e da anarquia".
Tudo quanto se extrai dessas palavras parece atualíssimo. Olhando deste começo dos anos 2000 para o passado, recordando Basileu e minhas angústias de jovem pai e estudante de 1954, de aflito procurador-geral de 1961, de cidadão preocupado com o sacrifício da democracia a partir de 1964, acabei chegando ao resultado oposto. Pus o pessimismo de lado.
O Direito brasileiro anda confuso, a adequação da vida ao progresso material e à globalização parece cada vez mais complicada. Os riscos da violência são intensos. Porém quero concluir, dizendo ao leitor que já tive sustos maiores quanto à vida do país. Muito maiores. Os de hoje, com a imperfeição das leis e de sua aplicação, com os escândalos instantâneos da comunicação social, são relativamente pequenos. O tempo atual sempre parece pior para quem o vive.


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