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São Paulo, domingo, 02 de novembro de 2003

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DANUZA LEÃO

Mãe

Mãe é assim mesmo: um dia elas vão embora; mesmo a relação tendo sido ótima, perfeita não foi, porque nenhuma é.
Frequentemente você se irritava com a quantidade de vezes que ela telefonava para saber da sua saúde ou fazer uma fofoca de família, sempre na hora em que você estava mais ocupado. Aliás: mãe sempre liga nessa hora, ou somos nós que sempre estamos ocupados quando elas ligam?
Depois, eram as reclamações: você não aparece nem telefona, o médico disse que tenho de fazer uns exames, a empregada anda péssima, o síndico está implicando. Mãe é mãe: raramente elas aparecem, sobretudo quando não estão mais na flor da idade, para contar uma boa notícia: que arranjaram um namorado novo ou que vão fazer um cruzeiro pela Grécia. E como nenhuma relação é perfeita, nem entre filho e mãe nem entre mãe e filho -e as duas são totalmente diferentes-, o tempo vai passando com alguns pequenos atritos, como é natural, e outros grandes, como também é natural.
Um dia a saúde começa a falhar, e ela começa a dar trabalho. Muito se fala do sofrimento dos doentes e pouco do sofrimento dos que acompanham os doentes.
É doloroso estar perto de alguém de quem se gosta muito sabendo que o fim está chegando, ver essa pessoa tomando soro, injeções, cheia de tubos, sofrendo, sem que se saiba se ela está ou não consciente da realidade, se tem esperança de sair daquela e voltar a ter de novo saúde e juventude. E você às vezes pede a Deus para que a agonia acabe, por ela e por você, que está cansada e morre de culpa. Se acha um monstro, mas sabe que não é por aí, não é só por aí; não é justo uma pessoa sofrer tanto, às vezes durante meses, anos, quando já se sabe como a história vai acabar.
Um dia ela acaba, e seus sentimentos ficam confusos. Por um lado, alívio, por todas as razões que nem é preciso explicar. Por outro, uma dor que você não tinha idéia de que ia sentir.
Dores são dores, todas diferentes; a cada uma se reage de uma maneira, e a da perda da mãe é pesada, vem lá de dentro, lá do fundo. Pela mãe a gente chora sem pudor, por ela a gente soluça, porque só mãe deixa a gente órfã de verdade, mesmo que se tenha passado dos 80.
Mas o tempo passa. Passam os primeiros meses, os primeiros anos, e, às vezes, num fim de semana, você chega a pensar em como é bom, num sábado, não ter que visitar a mãe, como fez durante tantos anos: pode ir ao cinema e almoçar tarde sem nenhuma espécie de compromisso. Depois de tanta análise, consegue lidar com a culpa com uma certa facilidade, compreende que não é alívio, é apenas a vida que continua e é assim mesmo.
Os anos continuam passando -três, cinco, dez, 12- e uma bela tarde, a troco de nada, você tem uma grande vontade de falar com ela. Não é exatamente saudade: é mais uma necessidade de ligar e saber que ela está lá, pronta para ouvir o que você quiser dizer, durante o tempo que for, mesmo que seja na hora das notícias da televisão, mesmo que o jantar esteja na mesa. Você não tem mais de quem reclamar porque telefona muito, nem a quem dizer "dá um tempo", já que ninguém está tão interessado em sua saúde, e tempo é o que não falta (e também não tem para quem ligar quando está no sufoco, precisando desabafar).
Você não morre por causa disso, nem chora, talvez nem chegue a sofrer -não do jeito que está acostumado a identificar o sofrimento-, mas fica mal; a vida nesse momento tem um peso que jamais desconfiou que tivesse, e assim, por nada, você busca na memória o número do telefone que era dela.
E se dá conta de que esqueceu.


E-mail - danuza.leao@uol.com.br


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