São Paulo, quarta-feira, 02 de novembro de 2005

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URBANIDADE

Vincenzo Scarpellini
PREPARATIVOS Nos "Caprichos" de Goya, gravura após gravura, o grotesco prepara o sublime. Nas notas dos "Caprichos" de Paganini, o sofrimento prepara a sensualidade. Células tumorais são, no fundo, células caprichosas, mas estes caprichos equivalem a outras tantas sentenças. Marisa Magani teve o estômago confiscado. Desde então o marido, Roberto, prepara as refeições dela.(VINCENZO SCARPELLINI)

Arte concreta

GILBERTO DIMENSTEIN
COLUNISTA DA FOLHA

A ilustração publicada hoje nesta coluna faz parte de uma dupla experiência do designer e ilustrador Vincenzo Scarpellini. Profissionalmente, ele se preocupa em transformar em arte o cotidiano das vítimas de câncer. "Procuro extrair a beleza da dor." Pessoalmente, está usando a arte para aprender a lidar com sua própria dor, enquanto freqüenta sessões de quimioterapia e aguarda o dia em que extirpem seu estômago.
Designer formado na Itália, Vincenzo é co-autor desde o início da coluna "Urbanidade", cujo principal ângulo é mostrar uma São Paulo que, apesar da epidemia dos mais variados tipos de violência, resiste muitas vezes em pequenos gestos de personagens anônimos. De repente, ele próprio se viu personagem anônimo num hospital, obrigado a aprender a resistir.
Vincenzo emagrecia há vários meses, mas estava tranqüilo. Afinal, seguidos diagnósticos indicavam que tudo não passava de uma gastrite. Os remédios pareciam não fazer efeito. Perdeu 12 quilos. Até que um professor da faculdade de medicina da Santa Casa -Antônio Gonçalves- desconfiou de algo mais grave. Estava certo. "Venho de uma família em que a palavra câncer nem sequer era mencionada", recorda-se Vincenzo.
Iniciou o tratamento quimioterápico, a fim de se preparar para a retirada do estômago. "Sei que é um chavão, mas a gente sempre imagina que isso só acontece com os outros."
Depois do baque psicológico e dos dias de pressão, ele preferiu não se esconder. "Falar é um jeito de enfrentar a doença." Decidiu ir além das palavras. Freqüentando o cotidiano das vítimas de câncer, ao receber os medicamentos no hospital, entrou em uma dimensão que lhe era desconhecida. "É um mundo paralelo, quase invisível." Vincenzo -que, muitas vezes, desenha personagens anônimos- preferiu não se render à invisibilidade da doença. "Desenhar é a minha forma de reagir e aprender com a dor."
Aprendeu que a dor ensina pouco. O que ensina mesmo, de acordo com ele, é a luta pela sobrevivência. "É a vontade de seguir em frente que mostra os nossos limites." Encontrou, nessa descoberta, a beleza estética na resistência, por exemplo, em um marido que estudou culinária para cozinhar pratos especiais para sua mulher cujo estômago foi arrancado -esse é o casal que aparece ao lado.


E-mail - gdimen@uol.com.br

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