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PASQUALE CIPRO NETO
"Quando meu bem-querer me vir..."
O senhor da coisa é o uso -o uso predominante no padrão formal, quando se trata das variedades cultas da língua
DIA DESSES, um amigo, jornalista, disse-me que recebeu
de um leitor um e-mail em
que, em outras palavras, era chamado de desconhecedor da língua etc.
O motivo? O emprego da forma "vir"
nesta frase: "Se você vir cenas interessantes, gente famosa...". O leitor
destacou a forma "vir" e "ensinou" a
conjugação correta ("Se você ver cenas..."). Paciente e polido, o jornalista escreveu ao leitor, limitando-se a
indicar-lhe as flexões do futuro do
subjuntivo de "ver" presentes no
"Houaiss". Resposta do leitor: "Vivendo e aprendendo". Menos mal.
Pois bem. Faz tempo, muito tempo, que não troco duas palavras sobre a conjugação de certos verbos irregulares, item desejável quando se
trata do domínio das variedades cultas da língua. Vamos falar deles, sim,
mas antes talvez seja necessário relembrar que o senhor da coisa é o
uso -obviamente, o uso predominante no padrão formal, quando se
trata da língua culta (ou "exemplar",
como diz o Professor Bechara).
É sempre bom lembrar que, quando dizem "eu sabo" ou "eu podo", as
crianças levam em conta um modelo cujo sistema já internalizaram. Se
de "andar" se faz "eu ando" e de "beber" se faz "eu bebo", de "saber" se
faz "eu sabo", uai! E, se de "beber" se
faz "eu bebi" e de "comer" se faz "eu
comi", de "fazer" se faz "eu fazi" e de
"dizer" se faz "eu dizi", santo Deus!
Criança que faz isso tem futuro, sim!
Um belo dia, a criança acaba absorvendo as formas que, embora irregulares, são consagradas pelo uso.
Note que "irregulares" significa
"que não são regulares", ou seja, que
não seguem as regras. "Regra" vem
do latim "regula", que, entre outros
significados, tem o de "preceito ou
norma que serve de guia a procedimentos ou comportamentos".
No caso dos verbos, a "regra" é a
primeira pessoa do singular do presente do indicativo ser formada por
esta conta: o infinitivo ("andar", "sofrer", "partir", por exemplo) perde a
terminação "-ar", "-er" ou "-ir" e recebe um "o" ("ando", "sofro", "parto"). Por razões diversas, certas flexões se afastam da "regra", ou seja,
do que é regular. Uma vez consagradas pelo uso, essas formas irregulares acabam "legitimadas" etc.
As irregularidades não são "privilégio" do presente do indicativo (e
de seu derivado, o presente do subjuntivo); estão também nos pretéritos e nos futuros. Nos verbos regulares, a primeira do singular do pretérito perfeito é feita com as terminações "-ei" (verbos que terminam em
"-ar" -"lavei", "casei") e "-i" (verbos
terminados em "-er" e "-ir" -"sofri",
"bebi", "decidi", "dirigi"). Nos verbos irregulares, tudo pode acontecer: de "estar" se faz "estive"; de "trazer", "trouxe"; de "caber", "coube".
A irregularidade que se dá no pretérito perfeito do indicativo se mantém nos tempos que dele derivam (o
futuro do subjuntivo é um deles). O
caminho mais curto começa na terceira do plural do perfeito, que, no
caso de "fazer", é "fizeram". Dessa
forma, elimina-se a terminação "-am" para que se chegue a "fizer"
("Quando/Se eu/ele/você fizer"). Já
fez isso com o verbo "ver"? Vamos lá:
a terceira do plural do perfeito é "viram" ("Viram você lá ontem"); cortando-se "-am", chega-se a "vir": "Se
você/ele/eu vir cenas interessantes...". Foi o que fez Chico Buarque
numa de suas canções: "Quando
meu bem-querer me vir...". É isso.
inculta@uol.com.br
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