|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Santo Daime se expande e invade crenças
Em seu terceiro ciclo de expansão, o chá do Santo Daime chega a comunidades de hinduísmo, umbanda e hare krishna
Vindo da Amazônia, bebida passou por centros urbanos brasileiros e pelo exterior até se transformar numa espécie de "cálice sagrado"
ROBERTO DE OLIVEIRA
DA REVISTA DA FOLHA
O altar é de Ganesh, deus
hindu do sucesso e da superação de obstáculos. Mas não só
dele. Ladeando a imagem, garrafões de plástico guardam um
líquido marrom e espesso. Um
cheiro de incenso se mistura ao
de rosas e lírios. Descalço, um
senhor de barba e cabelos grisalhos, roupa branca, serve a bebida. Cerca de 200 fiéis se aproximam em fila indiana. O som
oriental das cítaras é substituído pelo chocalho indígena dos
maracás. Mantras em sânscrito
são sucedidos por hinos em
português, que exaltam Jesus, a
Virgem e a floresta amazônica.
A cerimônia é hindu; o transe,
coletivo; e, o efeito, do chá do
Santo Daime.
A bebida é um dos ingredientes do ritual que acontece ao
menos uma vez por mês na escola espiritual Caminho do Coração, em Nazaré Paulista (56
km de SP). Psicólogo de formação, Sri Prem Baba, 42, é o mestre da cerimônia. Dois mentores guiam seus passos: o guru
Sri Sri Hans Raj Maharaji, que
vive na Índia, e o seringueiro
brasileiro neto de escravos,
Raimundo Irineu Serra (1892-1971), mestre Irineu, fundador
da doutrina do Santo Daime.
Na zona sul de São Paulo, no
Centro Espírita Sete Pedreiras,
a miscigenação de crenças se
repete, com orixás da umbanda, santos católicos e retratos
de daimistas posicionados em
lugares estratégicos do terreiro. A fusão resulta na umbandaime, que promove a mistura
entre a doutrina do daime com
a religião afro-brasileira.
O sincretismo que permeia
as duas cenas pode ser encarado como um terceiro fenômeno
de expansão do Santo Daime,
diz Henrique Carneiro, professor no Departamento de História da USP. Depois de ser "exportado" da floresta amazônica
para os grandes centros urbanos brasileiros e, depois, para o
exterior, a bebida se transformou no "cálice sagrado", entornado por outras religiões de cunho afro, cristão ou oriental.
Caboclos do chá
Para o antropólogo Edward
MacRae, 61, da Universidade
Federal da Bahia, assim como
outras religiões o Santo Daime
também tem a propriedade de
aglutinar elementos de outras
crenças, como umbanda, traços
indígenas, cristãos, afro e esotéricos, ocidentais ou orientais.
"A ayahuasca facilita a experiência mística. E é justamente
essa experiência, sem a intermediação da figura de um sacerdote, que está colaborando
para sua expansão", diz ele, autor de "Guiado pela Lua - Xamanismo e Uso Ritual da Ayahuasca no Culto do Santo Daime (ed. Brasiliense).
Cerca de 30 minutos depois
da ingestão do chá, praticantes
da umbandaime, vestidos de
branco, começam a "abrir a
banca", no momento das incorporações. É quando as entidades da umbanda começam a se
manifestar, diz a mãe-de-santo
Maria Natalina, 57.
"A ayahuasca proporciona
sensibilidade maior. É um instrumento de contato superior
com os orixás", diz ela. No Sete
Pedreiras, o culto dura oito horas -das 14h às 22h. Geralmente, aos domingos. Os freqüentadores chegam a participar de
quatro "despachos de daime",
servidos em copo plástico.
Coordenador do Conub
(Conselho Nacional da Umbanda do Brasil) no Estado de
São Paulo, Pai Medeiros, 39,
não condena a mistura. Ele diz
que a umbanda é inclusiva,
abrange muitas vertentes e que
a umbandaime é uma delas.
"Qualquer forma de manifestação do sagrado é respeitada."
Freqüentadora da umbanda
há seis anos, neste ano, a produtora de eventos Bia de Souza,
24, passou a participar das sessões de umbandaime. "O chá
propicia uma maior integração
com a religião. Abriu meus canais de percepção e chakras",
diz. Segundo ela, no começo,
por conta de reações como vômitos e diarréia -as chamadas
"peias"-, a experiência foi dolorosa. "Uma dor na alma que
faz parte da limpeza", acha.
Preocupações ecológicas entre daimistas e fiéis de outras
religiões que fazem uso da ayahuasca ganham, aqui, conotação religiosa. "É da floresta
amazônica que vêm o cipó e as
folhas, considerados sagrados,
a ponte com Deus. Em tempos
de aquecimento global, se o daimista não tem consciência ecológica, como vai atingir a sustentabilidade espiritual?",
questiona Wladimyr Sena
Araújo, 39, antropólogo e historiador, autor de ""Navegando
sobre as Ondas do Daime - História, Cosmologia e Ritual da
Barquinha" (editora Unicamp).
Hare daimistas
Apesar de a ayahuasca ser
classificada como substância
psicoativa alucinógena, seu cultivo, preparo e uso religioso são
garantidos pela Constituição
Federal, que defende a liberdade de culto.
Monja tibetana, Ani Sherab,
42, budista desde os 18, acha
que o daime é "algo sagrado do
qual que muitos fazem uso profano". "As pessoas devem ter
um preparo antes, durante e
depois de tomar o chá", diz ela,
que é usuária da bebida.
Questionada sobre qual a colaboração do daime em sua
busca espiritual, a monja diz
que, para ela, o chá "oferece
mais clareza para expressar e
reconhecer a verdade". "Com o
daime, recebo muitas bênçãos
e ensinamentos dos budas."
Apesar de ser comum entre
as religiões orientais a reverência aos mestres, nem todas funcionam assim. Líderes das comunidade hare krishna, por
exemplo, desaprovam o daime,
mas não negam que alguns
membros consumam o chá.
Chandramukha Swami, 50,
autoridade espiritual dos hares
em São Paulo e Rio, diz que a
crença exige padrão elevado de
conduta e comportamento.
Mas, no meio do percurso, alguns podem ter dificuldade e
buscam alternativas, como
uma "bengala".
Nem todos os fiéis concordam. Para o professor de português Pandita, 51, Krishna se revela de formas diferentes. "O
daime pode ser uma delas."
Uma das características das
crenças que proliferam pelos
grandes centros é a valorização
da experiência individual como
forma de negar as instituições.
"É uma mudança até na percepção de Deus, que cada um
pode buscar dentro de si", diz o
antropólogo Silas Guerriero,
49, do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião
da PUC-SP. "Se a verdade está
dentro dele, o uso de elementos
simbólicos e importados é apenas um meio." O sociólogo Antônio Flávio Pierucci, professor
da USP que pesquisa religião,
avalia que, hoje, há uma tendência à imitação entre as religiões. Na tentativa de competirem uma com as outras, elas
acabam se anulando, copiando
fórmulas e formatos e, com isso, perdem sua verdadeira
identidade. "É como ocorre no
comércio alimentício. Tem o
McDonald's e o Bob's", diz. "Isso ocorre porque é muito fácil
mudar de religião hoje em dia,
sob o marketing intenso na TV
e, principalmente, na web."
Segundo o professor, por curiosidade, muitos fiéis acabam
procurando essas novas religiões sem motivo e desconhecendo as distinções entre uma e
outra. "No fundo, todas alegam
que Deus é um só. Mas, na verdade, o que existe é uma guerra
entre deuses."
Texto Anterior: Mais Saudável Próximo Texto: A cada assassinato em Moema, 130 são mortos no Grajaú Índice
|