São Paulo, domingo, 02 de dezembro de 2007

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Santo Daime se expande e invade crenças

Em seu terceiro ciclo de expansão, o chá do Santo Daime chega a comunidades de hinduísmo, umbanda e hare krishna

Vindo da Amazônia, bebida passou por centros urbanos brasileiros e pelo exterior até se transformar numa espécie de "cálice sagrado"

ROBERTO DE OLIVEIRA
DA REVISTA DA FOLHA

O altar é de Ganesh, deus hindu do sucesso e da superação de obstáculos. Mas não só dele. Ladeando a imagem, garrafões de plástico guardam um líquido marrom e espesso. Um cheiro de incenso se mistura ao de rosas e lírios. Descalço, um senhor de barba e cabelos grisalhos, roupa branca, serve a bebida. Cerca de 200 fiéis se aproximam em fila indiana. O som oriental das cítaras é substituído pelo chocalho indígena dos maracás. Mantras em sânscrito são sucedidos por hinos em português, que exaltam Jesus, a Virgem e a floresta amazônica. A cerimônia é hindu; o transe, coletivo; e, o efeito, do chá do Santo Daime.
A bebida é um dos ingredientes do ritual que acontece ao menos uma vez por mês na escola espiritual Caminho do Coração, em Nazaré Paulista (56 km de SP). Psicólogo de formação, Sri Prem Baba, 42, é o mestre da cerimônia. Dois mentores guiam seus passos: o guru Sri Sri Hans Raj Maharaji, que vive na Índia, e o seringueiro brasileiro neto de escravos, Raimundo Irineu Serra (1892-1971), mestre Irineu, fundador da doutrina do Santo Daime.
Na zona sul de São Paulo, no Centro Espírita Sete Pedreiras, a miscigenação de crenças se repete, com orixás da umbanda, santos católicos e retratos de daimistas posicionados em lugares estratégicos do terreiro. A fusão resulta na umbandaime, que promove a mistura entre a doutrina do daime com a religião afro-brasileira.
O sincretismo que permeia as duas cenas pode ser encarado como um terceiro fenômeno de expansão do Santo Daime, diz Henrique Carneiro, professor no Departamento de História da USP. Depois de ser "exportado" da floresta amazônica para os grandes centros urbanos brasileiros e, depois, para o exterior, a bebida se transformou no "cálice sagrado", entornado por outras religiões de cunho afro, cristão ou oriental.

Caboclos do chá
Para o antropólogo Edward MacRae, 61, da Universidade Federal da Bahia, assim como outras religiões o Santo Daime também tem a propriedade de aglutinar elementos de outras crenças, como umbanda, traços indígenas, cristãos, afro e esotéricos, ocidentais ou orientais.
"A ayahuasca facilita a experiência mística. E é justamente essa experiência, sem a intermediação da figura de um sacerdote, que está colaborando para sua expansão", diz ele, autor de "Guiado pela Lua - Xamanismo e Uso Ritual da Ayahuasca no Culto do Santo Daime (ed. Brasiliense).
Cerca de 30 minutos depois da ingestão do chá, praticantes da umbandaime, vestidos de branco, começam a "abrir a banca", no momento das incorporações. É quando as entidades da umbanda começam a se manifestar, diz a mãe-de-santo Maria Natalina, 57.
"A ayahuasca proporciona sensibilidade maior. É um instrumento de contato superior com os orixás", diz ela. No Sete Pedreiras, o culto dura oito horas -das 14h às 22h. Geralmente, aos domingos. Os freqüentadores chegam a participar de quatro "despachos de daime", servidos em copo plástico.
Coordenador do Conub (Conselho Nacional da Umbanda do Brasil) no Estado de São Paulo, Pai Medeiros, 39, não condena a mistura. Ele diz que a umbanda é inclusiva, abrange muitas vertentes e que a umbandaime é uma delas. "Qualquer forma de manifestação do sagrado é respeitada."
Freqüentadora da umbanda há seis anos, neste ano, a produtora de eventos Bia de Souza, 24, passou a participar das sessões de umbandaime. "O chá propicia uma maior integração com a religião. Abriu meus canais de percepção e chakras", diz. Segundo ela, no começo, por conta de reações como vômitos e diarréia -as chamadas "peias"-, a experiência foi dolorosa. "Uma dor na alma que faz parte da limpeza", acha.
Preocupações ecológicas entre daimistas e fiéis de outras religiões que fazem uso da ayahuasca ganham, aqui, conotação religiosa. "É da floresta amazônica que vêm o cipó e as folhas, considerados sagrados, a ponte com Deus. Em tempos de aquecimento global, se o daimista não tem consciência ecológica, como vai atingir a sustentabilidade espiritual?", questiona Wladimyr Sena Araújo, 39, antropólogo e historiador, autor de ""Navegando sobre as Ondas do Daime - História, Cosmologia e Ritual da Barquinha" (editora Unicamp).

Hare daimistas
Apesar de a ayahuasca ser classificada como substância psicoativa alucinógena, seu cultivo, preparo e uso religioso são garantidos pela Constituição Federal, que defende a liberdade de culto.
Monja tibetana, Ani Sherab, 42, budista desde os 18, acha que o daime é "algo sagrado do qual que muitos fazem uso profano". "As pessoas devem ter um preparo antes, durante e depois de tomar o chá", diz ela, que é usuária da bebida.
Questionada sobre qual a colaboração do daime em sua busca espiritual, a monja diz que, para ela, o chá "oferece mais clareza para expressar e reconhecer a verdade". "Com o daime, recebo muitas bênçãos e ensinamentos dos budas."
Apesar de ser comum entre as religiões orientais a reverência aos mestres, nem todas funcionam assim. Líderes das comunidade hare krishna, por exemplo, desaprovam o daime, mas não negam que alguns membros consumam o chá.
Chandramukha Swami, 50, autoridade espiritual dos hares em São Paulo e Rio, diz que a crença exige padrão elevado de conduta e comportamento. Mas, no meio do percurso, alguns podem ter dificuldade e buscam alternativas, como uma "bengala".
Nem todos os fiéis concordam. Para o professor de português Pandita, 51, Krishna se revela de formas diferentes. "O daime pode ser uma delas."
Uma das características das crenças que proliferam pelos grandes centros é a valorização da experiência individual como forma de negar as instituições. "É uma mudança até na percepção de Deus, que cada um pode buscar dentro de si", diz o antropólogo Silas Guerriero, 49, do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da PUC-SP. "Se a verdade está dentro dele, o uso de elementos simbólicos e importados é apenas um meio." O sociólogo Antônio Flávio Pierucci, professor da USP que pesquisa religião, avalia que, hoje, há uma tendência à imitação entre as religiões. Na tentativa de competirem uma com as outras, elas acabam se anulando, copiando fórmulas e formatos e, com isso, perdem sua verdadeira identidade. "É como ocorre no comércio alimentício. Tem o McDonald's e o Bob's", diz. "Isso ocorre porque é muito fácil mudar de religião hoje em dia, sob o marketing intenso na TV e, principalmente, na web."
Segundo o professor, por curiosidade, muitos fiéis acabam procurando essas novas religiões sem motivo e desconhecendo as distinções entre uma e outra. "No fundo, todas alegam que Deus é um só. Mas, na verdade, o que existe é uma guerra entre deuses."


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