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PASQUALE CIPRO NETO
Gato matreiro, sensual, incendiário
Em poesia, "tudo-nada cabe", diz Gil em "Metáfora" ("Ao poeta cabe fazer com que na lata venha a caber o incabível")
"CRESCI NATURALMENTE, como crescem as magnólias e os gatos", diz Machado em "O Menino É Pai do Homem", capítulo de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", obra-prima
do Bruxo do Cosme Velho. Decerto é
desnecessário dizer que, no excerto
machadiano, "gatos" quer dizer "gatos" mesmo, ou seja, trata-se dos felídeos. Até aí, nenhuma novidade.
Pois bem. Ontem, a primeira página do UOL estampava uma manchete em que se afirmava que um "gato"
pode ter sido o causador do incêndio
na cadeia de Rio Piracicaba (MG).
Outra manchete informava que, para a genial e encantadora jogadora
de futebol Marta, o jogador português Cristiano Ronaldo é um "gato".
Nos dois casos, o pessoal do site
teve o cuidado de colocar a palavra
"gato" entre aspas, o que, para muita
gente (por "gente" entenda-se tanto
"leitores" quanto "redatores"), não
faz nenhuma diferença. No segundo
caso (o do conceito de Marta sobre
C. Ronaldo), vá lá que a falta das aspas não implicaria dificuldade para a
compreensão, mas no primeiro...
Santo Deus, uma coisa é afirmar
que um gato pode ter causado o incêndio; outra é afirmar que o tal incêndio pode ter sido causado por um
"gato". O nobre leitor já percebeu
aonde quero chegar, certo? Os sinais
de pontuação não são enfeites, lenteloujas (ou lantejoulas, tanto faz),
miçangas etc. Têm e cumprem seu
papel, muitas vezes bem definido.
No caso das aspas, um dos seus papéis é realçar o sentido figurado com
que se empregou determinada palavra ou expressão. Se um matreiro felídeo (isto é, um gato, sem aspas, como o é o gordo, guloso e preguiçoso
Garfield, por exemplo) perambula
pela fiação de determinado lugar e
causa um curto-circuito, a culpa é do
gato. Se humanos desastrados fazem ligações elétricas clandestinas e
isso causa curtos-circuitos, a culpa é
do "gato". Na verdade, é do homem
(ou será do "rato", com aspas?). Gato, rato, bicho-homem, homem-bicho -é quase tudo uma coisa só,
neste triste mundo de meu Deus.
Na memorável "Ode aos Ratos"
(música de Edu Lobo, letra de Chico
Buarque), encontram-se estes finos
versos, que encerram a obra-prima:
"Saqueador da metrópole / Tenaz
roedor / De toda esperança / Estuporador da ilusão / Ó meu semelhante / Filho de Deus, meu irmão".
Em seu belíssimo disco "Carioca",
Chico emenda "Ode aos Ratos" e
"Embolada" (também composta em
parceria com Edu Lobo), que assim
começa: "Rato / Rato que rói a roupa
/ Que rói a rapa do rei do morro...".
Compreendidas as metáforas (e, no
fundo, a alegoria), fica difícil saber se
esse rato é um rato ou um "rato".
Mas isso é poesia, e em poesia "tudo-nada cabe", como dizia Gilberto
Gil em sua genial "Metáfora" ("Na
lata do poeta tudo-nada cabe / Pois
ao poeta cabe fazer / Com que na lata venha a caber / O incabível").
Definir o sentido da linguagem
poética pode resultar em empobrecimento. Vale o que diz o mesmo Gil
na mesma "Metáfora": "(...) não se
meta a exigir do poeta / que determine o conteúdo em sua lata / (...)
Deixe a meta do poeta, não discuta /
Deixe a sua meta fora da disputa /
Meta dentro e fora, lata absoluta /
Deixe-a simplesmente metáfora".
Em se tratando de linguagem jornalística, é bom (re)lembrar, a clareza é mais do que necessária. É isso.
inculta@uol.com.br
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