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HABITAÇÃO
Desapropriado pela Prefeitura de São Paulo para uma reforma, prédio é depredado pelos seus últimos moradores
São Vito vive dias de edifício fantasma
FABIO SCHIVARTCHE
DA REPORTAGEM LOCAL
Estão de mudança os moradores do edifício que melhor simboliza no inconsciente coletivo a vida dos excluídos de São Paulo.
Os últimos habitantes do São
Vito já fecharam as malas e encaixotaram seus pertences. Na bagagem, além da esperança de voltar
ao prédio depois da reforma geral, muitos estão levando as pesadas portas corta-fogo para vendê-las a ferros-velhos. Nem no seu
ocaso o mais famoso treme-treme, localizado na região central
da cidade, escapou da dilapidação
que marcou sua decadência.
A poucos dias da desocupação
total, que possibilitará a reforma e
a revenda dos apartamentos, os
27 pavimentos do São Vito revelam uma fotografia do caos urbano. Montanhas de lixo de até quatro metros de altura em todos os
andares, traficantes e usuários de
drogas misturando-se no breu
das escadas, sem lâmpadas há semanas, e prostitutas e travestis
oferecendo seus serviços em
apartamentos lacrados pela prefeitura com finas tábuas.
O prédio vive uma lei própria,
dizem os pouco mais de 150 moradores restantes, que, de manhã,
congestionam com suas mudanças as estreitas escadas, já que é
preciso muita coragem para usar
o único dos três elevadores em
funcionamento. "É um trem-fantasma", resume Luís Carlos do
Nascimento, 12, que teve o pé esmagado na semana passada ao
subir para o 9º andar.
O elevador não tem luz nem
porta interna. Está sem ascensorista desde janeiro, pois, quando
começou a desapropriação, os
moradores pararam de pagar o
condomínio -que para alguns
era até mais caro do que o aluguel.
Revezam-se na função crianças
e o zelador Antônio Gomes da Silva, 49, com sua longa chave-de-fenda usada para abrir a porta externa quando o elevador estaciona. Nas contas desse pernambucano de Limoeiro, Luís foi a quarta criança a prender o pé no elevador nos últimos meses.
Silva ainda não sabe para onde
vai com sua mulher e os nove filhos depois que sair do São Vito.
Os R$ 300 de bolsa-aluguel que a
prefeitura vai lhe dar por 30 meses
não foram suficientes para alugar
outro apartamento.
Ele tampouco sabe se terá dinheiro para recomprar a quitinete
onde vive. "O prédio está uma
tristeza porque as pessoas não
têm certeza se voltarão para cá
um dia. Com a ajuda de Deus, espero voltar", afirma o zelador.
Além de Silva, outros moradores também contam com o auxílio
divino para garantir seus apartamentos no novo São Vito -que
pode vir a se chamar Palace.
Na noite da última quinta-feira,
obreiros da Igreja Universal do
Reino de Deus voltaram à cobertura para realizar o último culto
antes da desocupação total do
prédio. Não juntaram mais de oito adultos e quatro crianças.
"Onde quer que vocês encontrem moradia, em qualquer bairro que seja, procurem Jesus por
lá", pregou Lenílson Portugal.
Puxando os cantos da "Corrente pela Família", Jandira Contato,
63, foi quem trouxe as igrejas
evangélicas ao São Vito. Como a
maioria dos moradores, ela é conhecida pelo número de seu apartamento -"a vovó do 1.109".
Jandira divide o apartamento
com vista para a avenida do Estado e o Mercado Municipal com a
filha Kátia Cilene, bilheteira de
um cinema pornô no centro da cidade, o namorado dela e seus dois
netos. Vão todos para um apartamento alugado no Pari.
"Dediquei quase 30 anos da minha vida para manter a moral e os
bons costumes no prédio. Mas
nem em casa consegui vencer a
perdição", desabafa Jandira.
Quando essa filha de italianos
mudou-se para o São Vito, o perfil
dos moradores era semelhante ao
da época de sua inauguração, em
1959. Os 624 minúsculos apartamentos foram sendo ocupados
por imigrantes, caixeiros-viajantes e profissionais liberais.
A deterioração do centro da cidade, a partir dos anos 70, forçou
a saída da classe média para os
bairros e trouxe ao São Vito personagens do drama urbano das
metrópoles do século 20.
Eram os casos de Therezinha
Vanderlei, do dúplex 1.016/1.017,
que empresariava travestis, e de
Antonio Torrico Carvallo, do 416,
um musculoso boliviano de dois
metros de altura que cobrava dívidas, cantava música mexicana
em casas noturnas e eventualmente fazia apresentações na TV
no programa do Bolinha. Os dois
já se mudaram do São Vito.
Aos que ainda empacotam seus
pertences resta o medo de, ao final do dia, voltar para o prédio
onde o tráfico é livre e não há luz
nem elevadores nem portas, e
poucas janelas têm vidros. Tudo
imerso num mar de lixo. "Nem na
favela é assim. Lá, existe respeito",
diz Maria Moraes, 72, há mais de
20 anos no apartamento 1.608.
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