São Paulo, segunda-feira, 03 de maio de 2004

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HABITAÇÃO

Desapropriado pela Prefeitura de São Paulo para uma reforma, prédio é depredado pelos seus últimos moradores

São Vito vive dias de edifício fantasma

FABIO SCHIVARTCHE
DA REPORTAGEM LOCAL

Estão de mudança os moradores do edifício que melhor simboliza no inconsciente coletivo a vida dos excluídos de São Paulo.
Os últimos habitantes do São Vito já fecharam as malas e encaixotaram seus pertences. Na bagagem, além da esperança de voltar ao prédio depois da reforma geral, muitos estão levando as pesadas portas corta-fogo para vendê-las a ferros-velhos. Nem no seu ocaso o mais famoso treme-treme, localizado na região central da cidade, escapou da dilapidação que marcou sua decadência.
A poucos dias da desocupação total, que possibilitará a reforma e a revenda dos apartamentos, os 27 pavimentos do São Vito revelam uma fotografia do caos urbano. Montanhas de lixo de até quatro metros de altura em todos os andares, traficantes e usuários de drogas misturando-se no breu das escadas, sem lâmpadas há semanas, e prostitutas e travestis oferecendo seus serviços em apartamentos lacrados pela prefeitura com finas tábuas.
O prédio vive uma lei própria, dizem os pouco mais de 150 moradores restantes, que, de manhã, congestionam com suas mudanças as estreitas escadas, já que é preciso muita coragem para usar o único dos três elevadores em funcionamento. "É um trem-fantasma", resume Luís Carlos do Nascimento, 12, que teve o pé esmagado na semana passada ao subir para o 9º andar.
O elevador não tem luz nem porta interna. Está sem ascensorista desde janeiro, pois, quando começou a desapropriação, os moradores pararam de pagar o condomínio -que para alguns era até mais caro do que o aluguel.
Revezam-se na função crianças e o zelador Antônio Gomes da Silva, 49, com sua longa chave-de-fenda usada para abrir a porta externa quando o elevador estaciona. Nas contas desse pernambucano de Limoeiro, Luís foi a quarta criança a prender o pé no elevador nos últimos meses.
Silva ainda não sabe para onde vai com sua mulher e os nove filhos depois que sair do São Vito. Os R$ 300 de bolsa-aluguel que a prefeitura vai lhe dar por 30 meses não foram suficientes para alugar outro apartamento.
Ele tampouco sabe se terá dinheiro para recomprar a quitinete onde vive. "O prédio está uma tristeza porque as pessoas não têm certeza se voltarão para cá um dia. Com a ajuda de Deus, espero voltar", afirma o zelador.
Além de Silva, outros moradores também contam com o auxílio divino para garantir seus apartamentos no novo São Vito -que pode vir a se chamar Palace.
Na noite da última quinta-feira, obreiros da Igreja Universal do Reino de Deus voltaram à cobertura para realizar o último culto antes da desocupação total do prédio. Não juntaram mais de oito adultos e quatro crianças.
"Onde quer que vocês encontrem moradia, em qualquer bairro que seja, procurem Jesus por lá", pregou Lenílson Portugal.
Puxando os cantos da "Corrente pela Família", Jandira Contato, 63, foi quem trouxe as igrejas evangélicas ao São Vito. Como a maioria dos moradores, ela é conhecida pelo número de seu apartamento -"a vovó do 1.109".
Jandira divide o apartamento com vista para a avenida do Estado e o Mercado Municipal com a filha Kátia Cilene, bilheteira de um cinema pornô no centro da cidade, o namorado dela e seus dois netos. Vão todos para um apartamento alugado no Pari.
"Dediquei quase 30 anos da minha vida para manter a moral e os bons costumes no prédio. Mas nem em casa consegui vencer a perdição", desabafa Jandira.
Quando essa filha de italianos mudou-se para o São Vito, o perfil dos moradores era semelhante ao da época de sua inauguração, em 1959. Os 624 minúsculos apartamentos foram sendo ocupados por imigrantes, caixeiros-viajantes e profissionais liberais.
A deterioração do centro da cidade, a partir dos anos 70, forçou a saída da classe média para os bairros e trouxe ao São Vito personagens do drama urbano das metrópoles do século 20.
Eram os casos de Therezinha Vanderlei, do dúplex 1.016/1.017, que empresariava travestis, e de Antonio Torrico Carvallo, do 416, um musculoso boliviano de dois metros de altura que cobrava dívidas, cantava música mexicana em casas noturnas e eventualmente fazia apresentações na TV no programa do Bolinha. Os dois já se mudaram do São Vito.
Aos que ainda empacotam seus pertences resta o medo de, ao final do dia, voltar para o prédio onde o tráfico é livre e não há luz nem elevadores nem portas, e poucas janelas têm vidros. Tudo imerso num mar de lixo. "Nem na favela é assim. Lá, existe respeito", diz Maria Moraes, 72, há mais de 20 anos no apartamento 1.608.


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