São Paulo, terça, 3 de junho de 1997.



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Fiéis fazem inventário dos 'milagres'

MAURICIO STYCER
enviado especial a Recife

Estimulados pela Igreja Católica e pelos políticos da região, os pernambucanos mais pobres estão aproveitando o velório de frei Damião para fazer um impressionante inventário dos supostos milagres praticados pelo religioso. Mulheres, em sua maioria, aguardam até três horas, sob o sol, para ver o corpo de frei Damião por não mais de 15 segundos, dentro da basílica da Penha. À saída, chorando, explicam que estão ali para agradecer pelas graças que, têm certeza, devem ao frade.
Maria Lindiomar Holanda, 57, empregada doméstica, enfrentou 12 horas de viagem, desde Petrolina (780 km de Recife), para se despedir do homem que, diz, a tirou de dentro do rio São Francisco.
"Nós íamos morrer afogados. Treze pessoas, dentro do São Francisco. O barco virou e, de dentro do rio, eu via a torre da igreja e gritava: 'Valei, frei Damião! Valei!' E Jesus, com frei Damião e padre Cícero, tirou a gente do rio. Não morreu ninguém", relata Maria Lindiomar, chorando muito.
O que mais se encontra à porta da igreja são pessoas que tinham deficiências físicas e se dizem curadas por frei Damião. É só perguntar: "A senhora conhece algum milagre realizado por frei Damião?"
"Passei seis meses em cima da cama, sem andar. Tinha 14 anos na ocasião. Frei Damião passou pela minha cidade, Itambé (zona da mata), me confessei com ele e, em três dias, voltei a andar. Esse homem é um santo. Ele tem uma força dada por Deus", diz Irene Souza Pontes, 39, viúva e desempregada.
Ecos dos supostos poderes de frei Damião se espalham por todo o Estado de Pernambuco. Em São Joaquim do Monte (133 km de Recife), o frade gravou marcas de seus pés no cimento.
A aposentada Olívia Soares da Silva, 71, jura por Deus que conhece a menina incapaz de andar que colocou os seus pés sobre as marcas deixadas por frei Damião e passou a andar. "Só faz milagre quem é santo. Ele provou isso fazendo a aleijada andar", diz Olívia.
Se conseguiu fazer muitas pessoas voltarem a andar, é lógico que frei Damião também tenha conseguido que outras voltassem a enxergar. "Estava cego havia três anos, o médico dizia que nem milagre me faria ver de novo quando pedi a frei Damião. Hoje tenho uma visão subnormal", diz Nelson da Silva, 60, aposentado, descendo as escadas da igreja com a ajuda de uma vizinha de fila.

Milagres por fazer
Andando com dificuldades, as pernas muito inchadas, Maria Edith de Lima, 62, consegue furar a fila para ver o corpo de frei Damião. "Não peguei nem um minuto de fila porque sou 'defeita"', diz, querendo dizer "deficiente". "Já tive um derrame e só estou andando porque frei Damião quer."
Quem ainda não foi beneficiado por algum milagre ou ajuda do frade tem certeza de que ainda será. A garçonete Sandra Gomes Alves, 21, não só enfrentou três horas para ver o corpo, como ainda se confessou à saída com um dos frades que faziam uma espécie de plantão da fé na basílica da Penha.
O padre mandou que Sandra rezasse três pais-nossos e três ave-marias -além de rezar por frei Damião. "Tudo para conseguir de volta a minha filha, que minha irmã carregou para Aracaju, e para achar um homem de verdade, que me ame e seja um pouco honesto, porque homem honesto demais não existe", conta ela, chorando.
No guichê imaginário em que se transformou o velório, o corpo de frei Damião recebeu a companhia de dezenas de bilhetes com pedidos, equivalentes ao de Sandra, de pessoas com todos os tipos de problemas e muita fé no frade. "Tenho duas filhas retardadas e um filho ébrio na bebida", diz Isabel Maria da Silva, 67. Profissão: "sofredora". O que pediu a ele? "Pedi que tire meu filho da bebida", responde, indicando que, talvez, tenha consciência de alguns limites de frei Damião, como o de curar suas filhas com problemas mentais. Mas Isabel acha que o frade é santo. "Acho, não. Tenho certeza que ele é", diz.
Maria José de Souza, 65, comerciária aposentada, espera que frei Damião a ajude a conseguir uma casa. "Moro nela há 36 anos e a dona está querendo me tirar de lá. Acredito que frei Damião vai fazer um milagre para mim. Vou alcançar essa minha graça e vou publicar", promete.
Estímulos
Políticos pernambucanos de todos os partidos e religiosos famosos vêm dando declarações que reforçam a idéia de que frei Damião era uma espécie de santo vivo.
Anteontem, durante visita ao velório, o vice-presidente, Marco Maciel, disse: "Quem sabe, ele possa, no céu, interceder em nome dos brasileiros e, em particular, dos nordestinos." Ontem, d. Hélder Câmara disse aos jornalistas que frei Damião merece ser canonizado justamente porque "era um santo vivo". Mesmo o tenente-coronel Mário de Oliveira, comandante do 16º BPM, responsável por toda a "operação frei Damião", não evitou falar sobre os poderes do padre: "Acredito que alguns homens sejam escolhidos pelo dedo invisível e se sobressaiam. Pelos exemplos que o povo conta, frei Damião pode ser considerado um santo."
Ouça o efeito que isso tem, por exemplo, sobre uma pessoa como a costureira Maria das Dores Lisboa, 45: "Graças a Deus, ele ainda não fez nenhum milagre para mim, mas se eu estiver pedindo, ele vai me ajudar. É lógico." A confusão é tanta que a empregada doméstica Maria Patrício Moreno, 42, considera uma prova da santidade de frei Damião um acontecimento médico facilmente explicável, que foi a sobrevivência do religioso por cinco dias, após ter sido anunciada a sua morte cerebral. "Quer outra prova que ele é um santo?", pergunta, crédula.
Mesmo quem ganha a vida explorando a imagem de frei Damião acredita em seus poderes. O camelô Antonio Ladislau Guilherme, que ontem tinha o melhor produto do velório (fotos do frade tiradas dentro da igreja onde está sendo velado), dizia: "Ele está me protegendo. Isso aconteceu com ele para ajudar a gente."


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