São Paulo, Sábado, 03 de Julho de 1999
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LETRAS JURÍDICAS

Força tem novo uso internacional

WALTER CENEVIVA
da Equipe de Articulistas

Michael Ignatieff escreveu na edição do dia 21 de junho da revista "Time" comentário sobre o bombardeio ao qual a Iugoslávia foi submetida durante mais de dois meses. O comentário merece a avaliação brasileira sob o ângulo do direito de intervenção em nações soberanas.
Extraio do texto de Ignatieff uma primeira anotação, quando ele diz que "nunca a precisão do poder de fogo militar havia sido tão grande, nunca o custo político de usar esse poder foi tão baixo", aplicado à destruição de instalações vitais para o povo iugoslavo, sem a perda de um só militar estadunidense. Depois, conclui a respeito reconhecendo ser este "um fato novo para o mundo: um presidente dos Estados Unidos pode lançar seu castigo sobre qualquer país embusteiro do globo (can rain punishment down on any rogue state in the globe), na certeza de que isso não provocará a perda de vidas" norte-americanas.
A Carta das Nações Unidas, assinada em São Francisco da Califórnia em junho de 1945, determina o oposto. Reconhece que a guerra é um ilícito internacional, tanto que a solução guerreira passou a ser desconsiderada, predominando o encaminhamento de soluções jurídicas, práticas e político-diplomáticas por meio do Conselho de Segurança da ONU. Correspondeu a um grande salto à frente, pois foi comum, no passado recente, as nações mais fortes atacarem as mais fracas, até quando estas não pagavam suas dívidas em dia.
Na antevéspera do próximo século não deveria ser assim. A regra básica do direito internacional vigente está no parágrafo 4º do artigo 2º da Carta da ONU, pelo qual os seus signatários se comprometeram a não recorrer "à ameaça ou ao uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado". Nem ameaça, nem uso de força armada é tolerada pela Carta, preservando a integridade dos Estados livres.
A Carta da ONU não é documento exclusivo a apontar nesse rumo. O Pacto Briand-Kellog, que tomou o nome do ministro de Relações Exteriores da França e do secretário de Estado dos Estados Unidos, que o redigiram, afirma a condenação do "recurso à guerra", até mesmo "como instrumento de política nacional". O pacto foi firmado em 1928 e depois subscrito por muitos dos Estados soberanos da época. Tem mais: considerou a defesa contra agressão externa como o único meio legítimo de entrar em combate.
O exame dos rumos do direito internacional público parte da Carta da ONU e do pacto Briand-Kellog, contra a agressão militar, mas a nova política norte-americana definida pelo presidente Bill Clinton, da qual Michael Ignatieff fez adequada síntese, afasta e despreza toda teorização sobre o direito das nações, desenvolvida nos últimos 80 anos, como se viu dos dois documentos mencionados.
Por essa política inovada, sempre que a grande superpotência, isoladamente ou sob bandeira de organismos militares internacionais (a Otan por exemplo) considerar contrário à sua política nacional o comportamento de qualquer nação, poderá atacá-la. Evidentemente há nessa ameaça uma dose de hipocrisia: a ameaça só vale para os países fracos, liliputianos, desarmados em face do Gulliver gigante, pois só esses não provocarão perda de vidas americanas. A síntese da nova política corresponde a dizer que vale a pena matar e destruir países para punir acusados de violação dos direitos humanos, mas esse ideal não é tão importante que mereça que se morra por ele.


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