São Paulo, domingo, 03 de outubro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

DANUZA LEÃO

Votar bem faz bem

As pessoas sonham com as conquistas sociais, pensam no bem-estar geral e na justiça entre os homens; mas até que ponto? Freqüentemente, até onde esses ideais não interferem em seus interesses pessoais.
Os candidatos em que ela costuma votar são os que apresentam as propostas mais corretas: votou, por exemplo, naquele que prometeu lutar para que as mulheres tivessem o direito à licença-maternidade, nada mais justo.
Mas quando a babá, que adora seus filhos, comunica que está grávida, pensou, no fundo do coração (e sem contar a ninguém), que ela não precisava inventar esse filho logo agora (e de preferência, nunca). O bebê vai nascer nos primeiros dias de dezembro, e vai ter que encarar uma substituta, sem nenhuma experiência, para ficar no Natal, no Ano Novo e no Carnaval, quatro longos meses. É melhor ficar calada e não dizer o que acha dos tais direitos -o dos outros, é claro.
Na manhã de domingo, bem na porta de sua casa, estaciona um caminhão de som alardeando coisas pelas quais você sempre lutou -teoricamente- com muitos discursos e muito samba. Você dormiu tarde e só anseia por uma coisa: o silêncio. Dá para dizer o que se passa pela sua cabeça, ou é melhor ficar calada, para não ser tachada de nazista?
Num país com tantas desigualdades sociais, quem pode comprar ingresso para ver seu artista predileto numa casa de shows é uma pessoa privilegiada; nada mais digno de aplausos do que o projeto que instalou, em alguns pontos da cidade, pequenos palcos onde, nos fins de semana e feriados, cantores se apresentam. Um deles é a 50 metros de sua casa, e todo fim de semana, enquanto a galera vibra, canta e dança, você, que trabalhou a semana inteira e tudo o que queria era poder ler um livro em paz, tem ódio à alegria das ruas e amaldiçoa o evento. Ah, ser humano, você nunca falha.
Você tirou uma tarde para ir ver uma exposição de arte que está fazendo o maior sucesso. Quando chega, encontra um monte de crianças ciceroneadas por uma professora, e extasiadas com o que estão vendo. Crianças mostram seu entusiasmo fazendo barulho, e você amaldiçoa quem inventou que elas devem, desde pequenas, freqüentar museus. Quando votou pela última vez, isso fazia parte do plano do governo do seu candidato, mas que preferia estar só -ou quase- para desfrutar da emoção de ver tais obras de arte, lá isso preferia. Ah, como é difícil conciliar seu lado politicamente correto com seus interesses pessoais.
E aquela praia quase particular pertinho de Angra, de dificílimo acesso e pela qual você pagou uma fortuna, que parecia toda sua? Um belo dia aparece uma família e arma uma barraca a 500 metros de sua casa. Ninguém fazendo churrasco ou tomando banho de mar pelado, só oito crianças alegremente jogando bola e gritando, na mais perfeita harmonia familiar.
Você, que sempre admirou o PV por defender a idéia de que o mar é um bem de todos, começa a pensar seriamente em mandar subir uma cerca eletrificada para desfrutar do paraíso sozinho com seus amigos. Oh, vida.
Difícil a tal coerência quando se trata de nosso sono, da nossa casa, dos nossos filhos, dos nossos interesses. Mas hoje é dia de eleição e de quatro em quatro anos olhar menos para seu próprio umbigo e pensar um pouco nos outros, será que é muito?
Naquela manhã em que o samba impediu você de dormir, muita gente se divertiu -e não é bom saber disso? E sua babá, que está toda feliz porque vai ter um filho? Puxe pela memória e lembre como você ficou, quando soube que ia ter o seu.
Pense em tudo isso e escolha bem seu candidato, porque votar bem faz bem ao coração.
Vote bem.

E-mail - danuza.leao@uol.com.br

Texto Anterior: Uso exige treinamento adequado
Próximo Texto: Há 50 anos
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.