São Paulo, sexta-feira, 03 de novembro de 2000

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MORTE NO SHOPPING
Crime completa um ano; defesa quer anular laudo que atestou "plena capacidade de entendimento"
Atirador não é psicótico, afirma médico

ANDRÉ SINGER
DA REPORTAGEM LOCAL

O telefone tocou de madrugada. Na quarta-feira, 3 de novembro de 1999, o médico José Cássio do Nascimento Pitta, 46 anos, professor da Universidade Federal de São Paulo e responsável pela unidade de psiquiatria do Hospital São Paulo, tinha ido dormir tranquilo. Como de hábito, por volta de meia-noite.
Antes de adormecer, não assistira ao noticiário da TV. A possibilidade de que um paciente seu cometesse um massacre estava tão distante daquela casa que a mulher do psiquiatra, que tinha assistido ao jornal da noite, nada comentou.
A chamada ocorreu às 3h. Pitta, um homem afetivo e bem-humorado, atendeu. Era o subchefe da Casa Militar do governo do Estado de São Paulo. O interlocutor identificou-se e perguntou com que falava. Em seguida relatou o que havia ocorrido cerca de cinco horas antes no MorumbiShopping, um reduto da classe média paulistana na zona sul da cidade.
Um estudante havia interrompido a sessão do filme "Clube da Luta" com uma submetralhadora na mão e disparado contra a platéia. Matara três e ferira cinco pessoas. Há exato um ano ocorria um fato inédito no Brasil. À semelhança de matadores americanos, um jovem de classe média abrira fogo contra desconhecidos em um local público.
Pitta ficou impressionado, mas mesmo assim não lhe passou pela cabeça que o autor do crime estivesse tão perto dele. Perguntou se o oficial desejava que ele desse atendimento a alguém presente no episódio. "Doutor, o senhor não está entendendo, o atirador é paciente seu." "Como?", respondeu Pitta. "O nome dele é Mateus da Costa Meira."
Pitta soltou um palavrão e em seguida pediu desculpas. "Não, doutor, é questão de PQP, mesmo", disse o subchefe. Pitta foi à delegacia. Desde então acompanha Mateus com visitas semanais.
Faz cerca de um mês e meio que o réu foi transferido, a pedido da defesa, para o Centro de Observação Criminal, uma espécie de presídio modelo em São Paulo, no qual tem uma cela só para si. Segundo Pitta, nas últimas semanas o assassino encontra-se em "uma condição psíquica mais estável".
O advogado de defesa, Sérgio Reis, de Salvador (BA), onde moram os pais do rapaz, diz que o equilíbrio agora demonstrado pelo acusado deriva do uso de quatro medicamentos. "Sob o efeito da medicação, ele é controlado", afirma. "Nunca será um homem normal como outros, mas está sob controle."
Pitta confirma que Meira toma remédios, indicados por ele, e apresenta um discurso coerente e sem fuga da realidade. Por razões éticas, não revela que substâncias receitou, mas se sabe que entre elas há um antipsicótico. O mesmo que, por conta própria, Mateus deixara de tomar cinco dias antes da tragédia, o que pode ter precipitado os acontecimentos.
A conversa de Mateus com Pitta sempre foi razoável. Daí a surpresa do psiquiatra quando soube o que o paciente havia feito. "Nunca imaginei que uma coisa dessas pudesse acontecer", conta.
Ele havia visto Meira pela última vez uma semana antes. O estudante fôra ao seu consultório, no bairro de Higienópolis, região central da cidade, na quarta-feira, 27 de outubro. Estava acompanhado do pai, o oftalmologista Deolino Vanderley Meira.
Deolino cuidava do filho em São Paulo, desde que ele havia recebido alta da clínica Parque Julieta, no dia 20 de outubro.
A internação de Mateus durou 9 dias. Ele foi internado por uma assistente de Pitta depois de ter dado um soco que afundou a lataria da geladeira da própria casa, segundo relato da mãe, a enfermeira Aline da Costa Meira, ao "Fantástico", da Rede Globo.
Aline, que estava com Mateus no apartamento, ficou apavorada e fugiu. Os pais também contaram ao "Fantástico" que Mateus já os havia agredido umas duas vezes cada um no passado.
Pitta tinha sido procurado pela mãe de Mateus dois dias antes da internação, mas, como tinha que viajar, deixou o caso a cargo de uma colega. Diante do episódio relatado pela mãe, a psiquiatra decidiu pela internação "à revelia". Na hora da internação, no entanto, Mateus não opôs resistência. E, quando Pitta foi conhecê-lo, alguns dias depois, na clínica, o estudante mostrava-se calmo e coerente, embora frio.
De acordo com Pitta, Mateus não é psicótico nem esquizofrênico (veja entrevista abaixo). Isto é, mantém o pensamento organizado e o contato com a realidade. O problema dele diz respeito ao controle da impulsividade.
Uma hipótese é que, sem medicação adequada e sob o efeito de cocaína, os impulsos agressivos de Mateus, latentes há muitos anos, tenham explodido na sala 5 do MorumbiShopping, para desgraça de quem estava na platéia.
Mateus reconheceu ao "Fantástico" que cheirava cocaína de "quinze em quinze dias, de trinta em trinta, em uma quantidade um pouco intensa". O exame toxicológico feito depois do crime comprovou que ele havia tomado a droga pelo menos três dias antes de investir contra os espectadores do "Clube da Luta".
Não há como saber se ele tinha feito uso da substância nas horas que precederam a matança. De acordo com o seu advogado, Mateus nega. Mas, se ele não estava drogado e não é psicótico, o que explica a ação homicida?
Esse o mistério que talvez nunca se resolva. O laudo concluído em janeiro por quatro médicos a pedido do juiz José Ruy Borges Pereira afirma que Mateus "tinha plena capacidade de entendimento e autodeterminação para os fatos, demonstrada pela coerência de atos e intenções". Ou seja, sabia o que estava a fazer.
Reis entrou com um pedido de anulação do laudo junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). "Cinco psiquiatras de maior renome de São Paulo e da Bahia encontraram mais de 60 falhas no laudo", diz o advogado. Mesmo assim, o juiz paulista homologou as conclusões do exame.
Para Reis, o Tribunal de Justiça de São Paulo vem tomando "decisões políticas". "Negaram tudo a Viscome e a Pimenta", comenta, referindo-se ao ex-vereador Vicente Viscome e ao jornalista Antônio Marcos Pimenta Neves, que ficaram com Mateus na mesma cela da 77º DP.
Caso a decisão de aceitar o laudo prevaleça e Mateus for a júri, a linha da defesa será a da semi-imputabilidade, o que abateria a pena. "Ele teria condição de entender o caráter criminoso do fato, mas no momento do crime ele estava ausente dessa condição", argumenta Reis. O relato de Mateus logo depois da chacina indica premeditação. "Eu sempre tive em minha mente que deveria matar alguém", afirmou a "O Estado de S. Paulo" no dia seguinte.
Os atos são coerentes com a afirmação. Mateus comprou uma arma poderosa e cara. Deixou o apartamento e foi para um hotel. Procurou um cinema longe da sua casa. Testou a arma no banheiro antes de atirar no público.
No entanto, há cerca de dois meses, declarou à televisão: "Eu não tinha noção de que eu estava eliminando seres humanos, mas sim alienígenas do jogo "Doom'". "Doom" é um videogame famoso pela crueldade com que o jogador elimina os inimigos virtuais. Qual a verdade?
Na última vez que encontrou Mateus antes da fatídica madrugada de 4 de novembro, Pitta alertou o pai, Deolino, de que o filho não deveria ficar sozinho. Mas o oftalmologista disse que precisava ir a Salvador por alguns dias. Mesmo assim, Pitta não achou que pudesse ocorrer algo mais grave.
Deolino viajou. No dia seguinte, véspera do fim-de-semana prolongado pelo feriado de Finados, Mateus parou de tomar o remédio receitado por Pitta. Voltou a ouvir vozes no apartamento e na segunda-feira foi para o hotel Príncipe, na avenida São João.
No final da tarde de quarta-feira, apanhou a pequena arma automática encomendada e rumou para o shopping de táxi. O trânsito estava congestionado e ele fez o final do trajeto a pé. Chegou depois das 19h30.
"Escolhi o filme do Brad Pitt porque é legal, tem cenas de violência e conta a história de um esquizofrênico", contou Mateus depois. No meio da projeção, ele saiu do banheiro, postou-se na frente da tela e descarregou o pente de 39 tiros. Ao que tudo indica, em pelo menos alguns momentos apontando para as pessoas sentadas. Depois teria posto a arma no chão e teria se deixado dominar. "Meu plano terminava nos tiros", disse. Quando o telefone tocou na casa de Pitta, era tarde demais.



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