São Paulo, domingo, 03 de novembro de 2002

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ARTIGO

A próstata como ela é

MIGUEL SROUGI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Shakespeare dizia que o passar dos anos produzia nos homens sensações inevitáveis, as pernas cada vez mais finas dançavam desconcertadas dentro de calças cada vez mais folgadas, o corpo combalido se mantinha alheio aos pedidos da alma e do coração. Esqueceu-se de falar dos incômodos da próstata. Uma glândula emblemática, que nos jovens tem o papel triunfal de alimentar e manter vivos os espermatozóides e, com isto, perpetuar a espécie. Mas que no homem maduro é responsável por dois tormentos distintos, ambos de conseqüências negativas para a qualidade e quantidade de vida: o crescimento benigno, ou hiperplasia, e o câncer.
A próstata, glândula com as dimensões de uma noz, situa-se em torno do canal uretral, responsável pelo transporte de urina da bexiga para o exterior. Após os 40 anos de idade, 80% a 90% dos homens apresentam um crescimento benigno da glândula, que estrangula a luz do canal uretral e cria graus variados de dificuldade para se expelir a urina.
O outro problema que pode atingir a próstata é o câncer, sem relação com o crescimento benigno e que tem todas as implicações indesejáveis das doenças malignas. De acordo com dados produzidos este ano pela American Cancer Society, 13% dos homens norte-americanos serão atingidos pelo câncer da próstata e nada faz crer que no Brasil estes números sejam diferentes.
Além do constrangimento físico que impõe aos seus portadores, as doenças da próstata têm implicações socioeconômicas que não são desprezíveis. Somente para tratamento desses dois problemas são gastos anualmente nos Estados Unidos cerca de U$ 6 bilhões, sem contar o fardo de vidas ceifadas pela doença.
Segundo estimativas publicadas pela revista Cancer, a família de um paciente de 60 anos que morre pelo câncer da próstata deixa de auferir, nos Estados Unidos, cerca de U$ 370 mil. Não sei se muito ou pouco pelo valor de uma vida, mas não tão pouco para uma família desamparada.
As causas do crescimento benigno da próstata não são bem conhecidas, mas sabe-se que o problema é três vezes mais comum em homens cujos pais foram submetidos à cirurgia da glândula. Por outro lado, observou-se que intervenções de próstata são 50% menos frequentes em fumantes e obesos. Isto poderia sugerir que o fumo e a obesidade impedem o crescimento da próstata. Explicação inédita, porque pela primeira vez em medicina estaria sendo provado que cigarro e excesso de peso fazem bem à saúde.
A outra explicação, menos grandiosa e mais plausível, é que fumantes e obesos sofrem menos intervenções cirúrgicas por não viverem o suficiente para tanto ou pelo receio médico de enfrentar casos de maior risco cirúrgico. Com o crescimento benigno, surgem transtornos urinários sob forma de enfraquecimento do jato urinário, gotejamento de urina após cada micção, sensação de urgência para urinar e, o mais incômodo, aumento do número de micções, principalmente durante a noite.
Na maioria das vezes esses sintomas são discretos e toleráveis, em apenas um terço dos casos eles tornam-se inconvenientes e passam a prejudicar a qualidade de vida do paciente. Curiosamente, essas manifestações são cíclicas e alguns homens chegam a apresentar regressão espontânea das mesmas.
Isto foi confirmado por estudo realizado na Escócia com pacientes que apresentavam crescimento benigno; dois anos após a primeira consulta e sem qualquer tratamento, 50% dos casos apresentavam quadro clínico estável, 20% referiam melhora significativa e 30% queixavam-se de piora das manifestações.
Para tratar os pacientes com crescimento benigno, os médicos tomam suas decisões baseados na magnitude das manifestações urinárias. Os especialistas mais cuidadosos não indicam nenhum tratamento quando os sintomas são bem tolerados, empregam medicações nos pacientes com incômodos que começam a molestar e recorrem às intervenções cirúrgicas quando o quadro clínico compromete severamente a qualidade de vida do paciente.
Felizmente a maioria dos homens apresenta manifestações discretas e convive amistosamente com a situação, entre 25% e 40% apresentam queixas persistentes que exigem algum tratamento e em apenas 10% torna-se necessária à cirurgia.
Gostaria de reafirmar que o tratamento da hiperplasia só deve ser instituído quando os sintomas clínicos são proeminentes. Certos especialistas, muitas vezes por excesso de zelo, algumas vezes por outro tipo de excesso, costumam indicar a remoção da glândula sempre que ela está aumentada, com o argumento de que estariam sendo prevenidos problemas futuros. Essa posição é inconsistente, já que atualmente as intervenções de próstata são realizadas com segurança em qualquer idade. Ademais, não existiriam hospitais, filas e dinheiro suficientes se todos os homens com crescimento pouco sintomático da próstata passarem a ser tratados com cirurgia.
A terapêutica medicamentosa da hiperplasia é feita com os chamados bloqueadores adrenérgicos, com a finasterida ou com preparados vegetais naturais, os fitoterápicos. Os bloqueadores têm uma eficiência mais marcante no controle dos sintomas, a finasterida atua melhor em próstatas muito volumosas e reduz os riscos de cirurgia futura e os fitoterápicos são menos eficazes mas isentos de efeitos colaterais.
Entre 30% e 60% dos pacientes tratados com medicações apresentam melhora do quadro clínico, mas a possibilidade de surgirem reações adversas, como queda da pressão arterial ou disfunção sexual (ocorrem em 5% a 10% dos casos), limitam o uso indiscriminado desses agentes.
Quando se opta pela remoção cirúrgica, os especialistas empregam duas técnicas, uma executada através de incisão abdominal e preferível em próstatas volumosas, outra realizada pelo canal uretral, chamada cirurgia endoscópica e eficiente em glândulas com menos de 80 gramas.
Essas intervenções, executadas de forma apropriada, acompanham-se de sucesso clínico em cerca de 90% dos casos. Infelizmente, 10% dos pacientes mantém-se com os mesmos sintomas que os levaram a cirurgia e isto, em geral, relaciona-se com o aparecimento pós-operatório de estreitamentos do canal uretral ou por mal funcionamento da bexiga, comprometida previamente pela sua luta prolongada contra a obstrução prostática.
Ademais, as cirurgias podem se acompanhar de sequelas de fácil adaptação, como o orgasmo seco, sem saída de esperma, observado em 75% a 90% dos pacientes, e outras mais indesejáveis, como incontinência (perdas involuntárias de urina), que surgem em 0,5% a 3% dos casos. Uma palavra tranquilizadora, as intervenções nos casos de crescimento benigno não colocam em risco a potência sexual, isto só ocorre em pacientes com câncer da próstata submetidos a cirurgia radical ou radioterapia.
Vários centros de pesquisa vêm desenvolvendo esforços para substituir as intervenções cirúrgicas nos casos benignos por métodos menos agressivos, que utilizam energia térmica gerada por laser, radiofrequência ou ultrassom. Os testes clínicos iniciais com esses procedimentos, apresentados sob forma de acrônimos enigmáticos como TUNA, HIFU, VLAP ou TUMT, indicam uma melhor tolerância dos pacientes, mas benefícios práticos ainda modestos e de duração limitada.
Uma experiência inovadora, a chamada quimioablação por álcool, foi descrita em maio deste ano por um grupo da Universidade de Nova Jersey. O objetivo era produzir uma corrosão alcoólica do tecido que estrangula o canal uretral e, com isso, liberar o fluxo de urina. Quinze pacientes com crescimento benigno receberam injeções de álcool absoluto diretamente na próstata, sob anestesia superficial e sem necessidade de internação. Após o tratamento, ocorreu redução de mais de 70% na intensidade do sintomas clínicos, que perdurou por um ano.
Antes que os mais otimistas passem a utilizar este estudo como argumento, relembro que o álcool tem de ser injetado na próstata, automedicação por outras vias não tem ação benéfica comprovada sobre o crescimento benigno.
Com relação ao câncer da próstata e pedindo desculpas pelo lugar comum, tenho uma notícia ruim e outra boa. O número de casos da doença triplicou nos últimos 15 anos. Notícia ruim ou boa, dependendo do lado da mesa em que você costuma sentar no consultório médico. A bem da verdade, noticia ruim para todos, as salas de espera andam abarrotadas de doutores, atingidos igualmente por esse câncer.
Três motivos explicam o aumento no número de casos da doença. O câncer da próstata atinge principalmente indivíduos com mais de 50 anos e a sua frequência cresce com a idade. Com o aumento da longevidade do homem, mais casos são gerados na população. Em segundo lugar, a maior ilustração dos leigos sobre o problema e as constantes campanhas de detecção da doença passaram a identificar mais pacientes com câncer. Finalmente, ocorreu um aumento real na incidência desse tumor maligno.
Influências ambientais, como baixa exposição ao sol, e alimentares, como ingestão excessiva de gordura animal, têm sido responsabilizados pelo fenômeno e explicam, provavelmente, por que o câncer da próstata é 20 vezes mais comum em países escandinavos e nos Estados Unidos do que na China e Japão. Quando orientais passam a viver nos Estados Unidos, a incidência da doença nestes homens passa a se igualar a dos norte-americanos, atestando a influência de agentes ambientais sobre o aparecimento do problema.
A causa precisa do câncer da próstata não é conhecida, mas sabe-se que dois fatores aumentam os riscos da doença: raça e casos na família. Esse câncer é 50% mais freqüente em negros do que em brancos; também manifesta-se de forma mais agressiva em negros, cuja chance de morrer pelo mal é o dobro da observada em brancos. Da mesma forma, os riscos de câncer da próstata dobram em homens que têm um parente de primeiro grau (pai ou irmão) com a doença e é cinco vezes maior quando dois parentes de primeiro grau são atingidos pelo tumor.
O câncer da próstata não produz manifestações nas fases iniciais, quando o processo é potencialmente curável. Por isso, homens só poderão ser auxiliados pela medicina se, espontaneamente, realizarem exames periódicos da glândula. Por periódicos entende-se exames anuais a partir dos 50 anos; indivíduos com casos na família devem iniciar os exames preventivos aos 45 anos.
A identificação do câncer pode ser feita com precisão pelo especialista, por meio do toque da próstata e das dosagens no sangue do antígeno prostático específico (PSA). Esses dois exames devem ser realizados conjuntamente, já que o toque falha em 30% a 40% dos casos e o PSA falha em 20%.
Executando-se os dois testes simultaneamente deixamos escapar apenas 8% dos pacientes acometidos. Como mostra a tabela, conhecendo-se as taxas de PSA no sangue e o resultado do toque da próstata, pode-se calcular em cada homem o risco de existir câncer local.
O câncer da próstata tem um comportamento clínico único, comparado as outras doenças malignas. Quando se inspeciona a próstata de indivíduos com mais de 50 anos que faleceram por outros motivos, são encontrados focos cancerosos em 30% a 45% dos mesmos. Contudo, nessa mesma faixa etária, apenas 13% dos homens apresentam, em vida, manifestações do câncer e somente 3,5% morrem pelo mal.
Interpretando, o câncer da próstata é extremamente frequente mas permanece inerte na maior parte de seus portadores, sem causar problemas clínicos e sem levá-los à morte. Como tem sido repetido, esses homens morrem com o câncer mas não pelo câncer.
O comportamento dúbio dos tumores malignos da próstata gera uma certa angústia nos médicos que se dedicam ao problema: definir se a doença descoberta no seu paciente é o tipo de câncer "de autópsia", indolente, ou o tipo "clínico", de comportamento agressivo e que exige pronto tratamento.
Preocupados com o problema e auxiliados por recursos mais sofisticados de informática médica, os especialistas desenvolveram instrumentos denominados "nomogramas" que permitem distinguir as duas situações.
O mais utilizado, conhecido como nomograma de Partin, relaciona as taxas de PSA no sangue, a extensão da doença no organismo e o aspecto do tumor na biópsia (a chamada escala de Gleason). Com ele, é possível definir se o paciente necessita de tratamento agressivo ou pode ser mantido apenas em observação, quando se conclui que a doença é indolente. Infelizmente, estudos clínicos mostram que somente 10% a 20% dos casos descobertos em vida pertencem a esse último grupo.
Quando se chega à conclusão, pelas suas características, de que a doença precisa ser combatida, os especialistas selecionam o tratamento em função da extensão do câncer. Os pacientes com tumores localizados dentro da próstata são tratados com cirurgia (prostatectomia radical), com radioterapia externa (feixes de irradiação lançados sobre a próstata, em múltiplas sessões) ou com braquiterapia (implante na próstata de pequenas sementes de iodo radioativo, através de agulhas, em uma única sessão).
Os casos de câncer que se estendem para outros órgãos, gerando focos adicionais de doença denominados metástases, são tratados com a remoção dos testículos ou com hormônios. Essa última estratégia é também utilizada nos tumores mais simples, quando se julga que os inconvenientes da cirurgia ou da radioterapia suplantam o potencial de agressividade da doença.
O tratamento dos casos mais agressivos de câncer localizado da próstata tem gerado grande polêmica entre os especialistas, pois tanto cirurgiões como radioterapeutas proclamam, respectivamente, que a prostatectomia radical e a radioterapia representam a melhor maneira de tratar tais casos. Ressalvando minha condição suspeita de cirurgião, explico por que me sinto incomodado com a radioterapia convencional.
Em primeiro lugar e de acordo com dados do Capsure, entidade não-governamental dedicada ao estudo do câncer da próstata, 14% dos pacientes levados à cirurgia e quase 30% daqueles tratados com radioterapia são submetidos a um tratamento adicional subsequente. Números que traduzem uma incompetência relativa da radioterapia, já que a necessidade de tratamento adicional significa falência da terapêutica inicial.
Em segundo lugar, entre 20% a 40% dos pacientes submetidos à radioterapia permanecem com focos vivos do câncer quando a próstata é estudada dois anos após o tratamento inicial. Os radioterapeutas dizem que essas lesões residuais são inativas, de comportamento indolente. Escrevi antes e repito, na minha concepção, obviamente tendenciosa, câncer indolente é aquele que está dentro de um frasco de formol, não dentro do nosso organismo.
Dados produzidos este ano pelo National Cancer Institute demonstraram que, com os recursos de tratamento atualmente disponíveis, curamos de forma definitiva entre 75% e 95% dos pacientes com câncer da próstata. Números auspiciosos, mas que infelizmente não são alcançados sem ônus, todos os métodos de tratamento podem comprometer de forma além do razoável a qualidade de vida de seus portadores.
A prostatectomia radical acompanha-se de impotência sexual em 15% a 80% dos casos e de incontinência urinária em 3% a 35% dos mesmos, dependendo da experiência do cirurgião e da idade do paciente. A radioterapia e a braquiterapia produzem riscos um pouco inferiores de problemas sexuais, mas, por vezes, geram complicações intestinais molestas, principalmente diarréia acompanhada ou não de perdas sanguíneas, que pode persistir por anos.
Os pacientes submetidos ao tratamento hormonal apresentam invariavelmente problemas sexuais e, a longo prazo, podem evidenciar certa perda de massa muscular, anemia ou osteoporose. Por todos esses motivos, um especialista só orientará corretamente o tratamento de qualquer caso se levar em conta não apenas seus conhecimentos técnicos mas também os sentimentos mais genuínos de seus pacientes.
Em outras palavras, médicos e doentes, numa decisão conjunta, devem optar pela terapêutica mais eficiente quando sobrevida for a questão mais relevante e escolher o tratamento menos agressivo quando os riscos e os tipos de complicações possíveis forem intoleráveis para esse paciente.
O câncer da próstata não pode ser evitado no presente momento, mas os riscos da doença podem ser atenuados com medidas simples. A redução da ingestão de gordura animal para menos de 15% do total de calorias diárias e o consumo de alimentos ricos em genisteína e enterolactonas, como brócolis, espinafre, repolho, couve-flor, feijão, soja e abóbora, provavelmente reduzem a incidência da doença, se adotados no início da idade adulta.
O consumo de licopeno, presente em grande quantidade no tomate e seus derivados, na goiaba vermelha e na melancia, diminui em 35% os riscos de câncer da próstata, segundo estudos da Universidade de Harvard.
Ademais, de acordo com pesquisas da Dra. Kathy Helzlsouer, da Universidade Johns Hopkins, homens que ingerem o equivalente a 800 mg de alfatocoferol (vitamina E) e 200 microg de selênio (quantidade existente em duas castanhas do Pará) apresentam redução de 36% a 75% na incidência da doença. Ainda, de acordo com pesquisadores neozelandeses, a ingestão de ácidos graxos não-saturados de cadeia longa encontrados em óleos de peixes, principalmente o salmão, reduz de forma expressiva os riscos de aparecimento desses tumores.
Finalizo lembrando que a incidência do câncer da próstata aumenta com a idade -50% dos indivíduos com 80 anos apresentam áreas cancerosas na glândula e a doença não poupará nenhum homem que viver até 100 anos.
Isso transforma a pequenina próstata num foco de comoção para a mente humana, incapaz de aceitar nosso extermínio. Talvez movido por esse sentimento e apoiado em textos bíblicos, Thomas Sydenham, médico do século 17, recomendava a prática do shunamitismo, crença que dizia que se uma moça virgem deitasse sobre o corpo de um velho moribundo, ela lhe transmitiria calor e umidade, revigorando-o, restabelecendo suas funções urinárias e prolongando sua existência.
Na minha opinião, compartilhada também por minha mulher, a melhor atitude para se evitar problemas urinários e prolongar a vida é realizar exames anuais da próstata, eliminando precocemente o câncer, se por infelicidade ele estiver presente. Até porque a medicina não comprovou, até hoje, os benefícios reais do shunamitismo. E, também, porque não descobriu o que acontece com a pobre coitada.


Médico, 55 anos, professor titular de urologia da Escola Paulista de Medicina (Unifesp) e pós-graduado em urologia pela Universidade de Harvard (EUA)

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