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PASQUALE CIPRO NETO
"Não se governa com ideais"
"Faz escuro, mas eu canto", escreveu o grande poeta amazonense Thiago de Mello.
E faz escuro mesmo, caro leitor.
Podridões político-ideológicas à
parte, o escuro se faz presente
também (e não só) na leitura, na
compreensão do mundo etc.
É triste constatar que mesmo
entre os profissionais do texto é
patente a incapacidade de entender o que está escrito. A ironia,
por exemplo, nem sempre é captada por quem deveria ser mestre
no assunto. Certa vez, uma douta
professora universitária se pôs a
dizer o diabo de Caetano Veloso.
O motivo da cólera? Estes versos,
de "Língua": "Se você tem uma
idéia incrível, é melhor fazer uma
canção / Está provado que só é
possível filosofar em alemão". Para a mestra, é possível filosofar em
português e em outras línguas.
Ora pipocas! E quem foi que disse
que Caetano disse o contrário?
Relatei o fato a Caetano, que,
rindo, disse: "Mas ela não entendeu nada! Não entendeu a ironia?". Não entendeu mesmo. No
mínimo por levar tudo ao pé da
letra ou por não saber que, na base da ironia de Caetano, está um
velho conceito, que divide tudo
em diversos pares (natureza e cultura, letramento e analfabetismo,
centro e periferia, racionalidade e
irracionalidade etc.). A quem se
interessa pelo tema sugiro o texto
(disponível na internet) "É Possível Filosofar em Português", de
Maria A. Brum Lemos.
Quem leva ao pé da letra, descontextualiza e/ou não tem conhecimento dos textos com os
quais "dialoga" o texto lido no
momento corre o sério risco de
não entender nada ou -o que é
muito pior- entender exatamente o contrário do que quis dizer quem escreveu. Não é por acaso que a intertextualidade é palavra-chave nas provas de português dos mais importantes vestibulares e concursos públicos. O
entendimento de um texto vai
muito, muito além do mero domínio das normas gramaticais ou
do significado das palavras.
Nesta semana, José Saramago
concedeu bela entrevista ao competente repórter Edney Silvestre,
da TV Globo. Disse o autor de
"Ensaio Sobre a Cegueira": "Não
se ganham batalhas de hoje com
as armas de ontem. Não se governa, não se atua na sociedade com
ideais. Tampouco se atua sem
ideais, mas o ideal não é um instrumento de trabalho. É preciso
encontrá-lo. Precisamos de idéias.
Esse é o grande problema".
Suponha descontextualizada a
frase "Não se atua na sociedade,
não se governa com ideais". O mínimo que um apressadinho poderia fazer seria afirmar que Saramago propõe o fim dos ideais, das
ideologias. Talvez temeroso do
que se pudesse (mal) entender de
suas palavras, o mestre português
apressou-se em explicar o papel
da expressão "com ideais" ("mas
o ideal não é um instrumento").
Isso dá valor ímpar ao par "com
ideais/sem ideais": em "com
ideais", a preposição "com" introduz o instrumento; em "sem
ideais", a preposição "sem" introduz a condição ("Não se atua na
sociedade sem ideais" = "Não se
atua na sociedade se não houver/
sem que haja ideais"). Como se
vê, a relação que existe entre
"com ideais" e "sem ideais" vai
muito além da mera antonímia.
Nos dias de hoje, em que as pessoas fecham o dicionário mal o
abrem, abrem mil telas (e não
vêem nenhuma), parece utópico
exigir contextualização etc. Faz
escuro, mas eu canto. É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br
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