São Paulo, quinta-feira, 03 de novembro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PASQUALE CIPRO NETO

"Não se governa com ideais"

"Faz escuro, mas eu canto", escreveu o grande poeta amazonense Thiago de Mello. E faz escuro mesmo, caro leitor. Podridões político-ideológicas à parte, o escuro se faz presente também (e não só) na leitura, na compreensão do mundo etc.
É triste constatar que mesmo entre os profissionais do texto é patente a incapacidade de entender o que está escrito. A ironia, por exemplo, nem sempre é captada por quem deveria ser mestre no assunto. Certa vez, uma douta professora universitária se pôs a dizer o diabo de Caetano Veloso. O motivo da cólera? Estes versos, de "Língua": "Se você tem uma idéia incrível, é melhor fazer uma canção / Está provado que só é possível filosofar em alemão". Para a mestra, é possível filosofar em português e em outras línguas. Ora pipocas! E quem foi que disse que Caetano disse o contrário?
Relatei o fato a Caetano, que, rindo, disse: "Mas ela não entendeu nada! Não entendeu a ironia?". Não entendeu mesmo. No mínimo por levar tudo ao pé da letra ou por não saber que, na base da ironia de Caetano, está um velho conceito, que divide tudo em diversos pares (natureza e cultura, letramento e analfabetismo, centro e periferia, racionalidade e irracionalidade etc.). A quem se interessa pelo tema sugiro o texto (disponível na internet) "É Possível Filosofar em Português", de Maria A. Brum Lemos.
Quem leva ao pé da letra, descontextualiza e/ou não tem conhecimento dos textos com os quais "dialoga" o texto lido no momento corre o sério risco de não entender nada ou -o que é muito pior- entender exatamente o contrário do que quis dizer quem escreveu. Não é por acaso que a intertextualidade é palavra-chave nas provas de português dos mais importantes vestibulares e concursos públicos. O entendimento de um texto vai muito, muito além do mero domínio das normas gramaticais ou do significado das palavras.
Nesta semana, José Saramago concedeu bela entrevista ao competente repórter Edney Silvestre, da TV Globo. Disse o autor de "Ensaio Sobre a Cegueira": "Não se ganham batalhas de hoje com as armas de ontem. Não se governa, não se atua na sociedade com ideais. Tampouco se atua sem ideais, mas o ideal não é um instrumento de trabalho. É preciso encontrá-lo. Precisamos de idéias. Esse é o grande problema".
Suponha descontextualizada a frase "Não se atua na sociedade, não se governa com ideais". O mínimo que um apressadinho poderia fazer seria afirmar que Saramago propõe o fim dos ideais, das ideologias. Talvez temeroso do que se pudesse (mal) entender de suas palavras, o mestre português apressou-se em explicar o papel da expressão "com ideais" ("mas o ideal não é um instrumento").
Isso dá valor ímpar ao par "com ideais/sem ideais": em "com ideais", a preposição "com" introduz o instrumento; em "sem ideais", a preposição "sem" introduz a condição ("Não se atua na sociedade sem ideais" = "Não se atua na sociedade se não houver/ sem que haja ideais"). Como se vê, a relação que existe entre "com ideais" e "sem ideais" vai muito além da mera antonímia.
Nos dias de hoje, em que as pessoas fecham o dicionário mal o abrem, abrem mil telas (e não vêem nenhuma), parece utópico exigir contextualização etc. Faz escuro, mas eu canto. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br


Texto Anterior: Estudantes dizem que doações são essenciais
Próximo Texto: Trânsito: Palmeiras x Flamengo muda trânsito no Parque Antarctica
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.