São Paulo, domingo, 04 de março de 2001

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GILBERTO DIMENSTEIN
Carnaval mostra o pânico e dá lição de civilidade

Enquanto cantava em cima do trio elétrico, no domingo passado, Daniela Mercury viu um grupo de adolescentes trocando murros e pontapés. Diante da cena tão comum nas ruas ocupadas por foliões alcoolizados, teve uma reação inusitada.
Irritada, ela mandou o caminhão ficar onde estava, suspendeu a música e, microfone na mão, ajudou a apartar a briga: passou um amplificado pito nos jovens selvagens, expondo-os ao ridículo público.
Somente interrompeu o sermão depois que acabou a pancadaria. A multidão, reverente, aplaudiu o "deixa-disso", e o trio elétrico voltou a andar. No trajeto, estavam penduradas faixas que ostentavam a palavra paz.
A paz é uma bandeira empunhada por toda a mídia local, ainda comovida com o recente caso de sequestro e assassinato de uma jornalista em Salvador. Por isso a música "Tapa na Cara" levou tantos tapas na cara, boicotada por vários cantores e bandas.
A novidade do Carnaval deste ano foi o que os tambores mandaram dizer: a paciência do brasileiro com a violência ultrapassou o limite do suportável. Sem lideranças políticas e sem um comitê central de campanha, montou-se, no país, um desfile-passeata de protesto, alegre e vestido de branco.
Lenços brancos foram distribuídos no sambódromo, no Rio, onde 9 das 14 escolas que desfilaram pelo Grupo Especial entoavam enredos cujo tema era a paz.
A Mocidade Independente saudou Dalai Lama, Luther King e Gandhi. Em um de seus carros alegóricos, estava Marcelo Yuka, o integrante do grupo O Rappa que, atacado por assaltantes, ficou tetraplégico.
Por trás do que se viu nos enredos, há uma trama política. Graças ao Viva Rio, a cidade é, no Brasil, a pioneira das mobilizações populares contra a violência, da reação ao crime organizado e às guerras nas favelas.
Serviu como espécie de incubadora de iniciativas como a entidade Sou da Paz, em São Paulo -uma organização não-governamental que, aliás, estava em uma das alas da Pérola Negra.
Antes de abrir a primeira noite de desfiles em São Paulo, a Pérola Negra pediu um minuto de silêncio. Em seu enredo -"A Vida pela Paz, Solidariedade"- reverenciava Gandhi, idealizador da rebeldia pela não-violência.
A Pérola Negra está sediada na Vila Madalena, bairro onde se misturam arte e boemia, uma espécie de cruzamento de São Francisco, na Califórnia, com Salvador. A região está menos alegre; os boêmios, mais receosos.
Indignadas com o assassinato de um jovem e assustadas com a crescente violência no bairro, dezenas de mães de adolescentes lançaram recentemente o movimento Em Nome do Bem Comum. Exigem eficiência policial, chamam a atenção dos pais e alertam sobre a atuação de gangues que ameaçam a tranquilidade das centenas de milhares de jovens da classe média que se divertem nos bares e restaurantes da região. E, assim, nutrem os pavores noturnos nas conversas recorrentes dos pais paulistanos sobre a dificuldade de dormir enquanto os filhos não chegam em casa.
Quando a maior festa da alegria é embalada pelo ritmo do medo, produz-se um enredo de demanda por civilidade. Mais do que o desemprego, os baixos salários ou a miséria, o sossego nas ruas passou a ser a principal reivindicação, de ricos e pobres, nas cidades brasileiras.
Presidenciáveis e candidatos a governador, preparem-se: a segurança vai estar no topo dos debates da sucessão, e os candidatos serão instados a apresentar propostas com um mínimo de seriedade para diminuir a violência urbana.
Se o tema já dominou as eleições municipais, embora os prefeitos pouco possam fazer para apaziguar as ruas, imagine o quanto será evocado nas disputas aos governos estaduais e à Presidência da República.
Vou dizer mais uma vez o que considero fundamental nas políticas de segurança pública: violência é assunto complexo demais para ficar somente na mão da polícia.
A virada das estatísticas de criminalidade em Nova York foi antecedida de uma ampla articulação comunitária, que envolveu empresários, publicitários, educadores e mídia.
Nem precisamos ir tão longe. Em Salvador, este ano, não se registrou uma única morte associada à violência no Carnaval.
PS -Testemunhei em Salvador uma parábola da violência. Fui assistir, nas vésperas do Carnaval, a uma peça encenada por um grupo de adolescentes da periferia da cidade, baseada no meu livro "O Cidadão de Papel".
O objetivo do grupo é levar o espetáculo para os mais violentos pontos da cidade, para discutir noções de cidadania.
Depois do espetáculo, os atores voltaram para casa e foram apedrejados por gangues. Ficção e realidade se misturaram; as cenas que mostraram para a platéia eram apenas uma reprodução do que sentiriam, logo em seguida, na cidade. Era como se o palco fosse um mero prolongamento da rua.
Para dar um toque de ficção à realidade, o lugar do apedrejamento se chama Bairro da Paz.

E-mail - gdimen@uol.com.br



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