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GILBERTO DIMENSTEIN
Carnaval mostra o pânico e dá lição de civilidade
Enquanto cantava em
cima do trio elétrico, no domingo passado, Daniela Mercury
viu um grupo de adolescentes trocando murros e pontapés. Diante
da cena tão comum nas ruas ocupadas por foliões alcoolizados, teve uma reação inusitada.
Irritada, ela mandou o caminhão ficar onde estava, suspendeu a música e, microfone na
mão, ajudou a apartar a briga:
passou um amplificado pito nos
jovens selvagens, expondo-os ao
ridículo público.
Somente interrompeu o sermão
depois que acabou a pancadaria.
A multidão, reverente, aplaudiu o
"deixa-disso", e o trio elétrico voltou a andar. No trajeto, estavam
penduradas faixas que ostentavam a palavra paz.
A paz é uma bandeira empunhada por toda a mídia local,
ainda comovida com o recente
caso de sequestro e assassinato de
uma jornalista em Salvador. Por
isso a música "Tapa na Cara" levou tantos tapas na cara, boicotada por vários cantores e bandas.
A novidade do Carnaval deste
ano foi o que os tambores mandaram dizer: a paciência do brasileiro com a violência ultrapassou o
limite do suportável. Sem lideranças políticas e sem um comitê central de campanha, montou-se, no
país, um desfile-passeata de protesto, alegre e vestido de branco.
Lenços brancos foram distribuídos no sambódromo, no Rio, onde 9 das 14 escolas que desfilaram
pelo Grupo Especial entoavam
enredos cujo tema era a paz.
A Mocidade Independente saudou Dalai Lama, Luther King e
Gandhi. Em um de seus carros
alegóricos, estava Marcelo Yuka,
o integrante do grupo O Rappa
que, atacado por assaltantes, ficou tetraplégico.
Por trás do que se viu nos enredos, há uma trama política. Graças ao Viva Rio, a cidade é, no
Brasil, a pioneira das mobilizações populares contra a violência,
da reação ao crime organizado e
às guerras nas favelas.
Serviu como espécie de incubadora de iniciativas como a entidade Sou da Paz, em São Paulo
-uma organização não-governamental que, aliás, estava em
uma das alas da Pérola Negra.
Antes de abrir a primeira noite
de desfiles em São Paulo, a Pérola
Negra pediu um minuto de silêncio. Em seu enredo -"A Vida pela Paz, Solidariedade"- reverenciava Gandhi, idealizador da rebeldia pela não-violência.
A Pérola Negra está sediada na
Vila Madalena, bairro onde se
misturam arte e boemia, uma espécie de cruzamento de São Francisco, na Califórnia, com Salvador. A região está menos alegre;
os boêmios, mais receosos.
Indignadas com o assassinato
de um jovem e assustadas com a
crescente violência no bairro, dezenas de mães de adolescentes
lançaram recentemente o movimento Em Nome do Bem Comum. Exigem eficiência policial,
chamam a atenção dos pais e
alertam sobre a atuação de gangues que ameaçam a tranquilidade das centenas de milhares de jovens da classe média que se divertem nos bares e restaurantes da
região. E, assim, nutrem os pavores noturnos nas conversas recorrentes dos pais paulistanos sobre
a dificuldade de dormir enquanto
os filhos não chegam em casa.
Quando a maior festa da alegria
é embalada pelo ritmo do medo,
produz-se um enredo de demanda por civilidade. Mais do que o
desemprego, os baixos salários ou
a miséria, o sossego nas ruas passou a ser a principal reivindicação, de ricos e pobres, nas cidades
brasileiras.
Presidenciáveis e candidatos a
governador, preparem-se: a segurança vai estar no topo dos debates da sucessão, e os candidatos
serão instados a apresentar propostas com um mínimo de seriedade para diminuir a violência
urbana.
Se o tema já dominou as eleições municipais, embora os prefeitos pouco possam fazer para
apaziguar as ruas, imagine o
quanto será evocado nas disputas
aos governos estaduais e à Presidência da República.
Vou dizer mais uma vez o que
considero fundamental nas políticas de segurança pública: violência é assunto complexo demais
para ficar somente na mão da polícia.
A virada das estatísticas de criminalidade em Nova York foi antecedida de uma ampla articulação comunitária, que envolveu
empresários, publicitários, educadores e mídia.
Nem precisamos ir tão longe.
Em Salvador, este ano, não se registrou uma única morte associada à violência no Carnaval.
PS -Testemunhei em Salvador
uma parábola da violência. Fui
assistir, nas vésperas do Carnaval, a uma peça encenada por um
grupo de adolescentes da periferia
da cidade, baseada no meu livro
"O Cidadão de Papel".
O objetivo do grupo é levar o espetáculo para os mais violentos
pontos da cidade, para discutir
noções de cidadania.
Depois do espetáculo, os atores
voltaram para casa e foram apedrejados por gangues. Ficção e
realidade se misturaram; as cenas
que mostraram para a platéia
eram apenas uma reprodução do
que sentiriam, logo em seguida,
na cidade. Era como se o palco
fosse um mero prolongamento da
rua.
Para dar um toque de ficção à
realidade, o lugar do apedrejamento se chama Bairro da Paz.
E-mail - gdimen@uol.com.br
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