São Paulo, domingo, 04 de julho de 2004

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ENTREVISTA

Aborto autorizado enfrenta falta de estrutura e resistência médica

AURELIANO BIANCARELLI
DA REPORTAGEM LOCAL

"Algumas mães olham o ultra-som, eu mostro que o bebê está sem cérebro, que vai morrer ao nascer. Mas elas sentem o bebê se mexendo, dando chutinhos, vêem seu coração batendo. Aí me dizem: o exame está errado, meu bebê está bem e vai nascer sadio."
Jorge Andalaft Neto dirige a Comissão Nacional de Violência Sexual e Interrupção da Gestação Prevista em Lei e diz que já se defrontou com várias situações como essa. A comissão faz parte da Febrasgo, federação que reúne as associações de ginecologia e obstetrícia do país. A anencefalia, ausência de cérebro no feto, é uma situação incompatível com a vida, porque o bebê viverá apenas alguns dias ou horas, caso a gravidez não seja interrompida. Mas os abortos autorizados por lei -quando há risco para a mãe ou uma gravidez por estupro- ainda não incluem a anencefalia.
Ao autorizar a "antecipação do parto", em liminar na última quinta-feira, o Supremo Tribunal Federal trouxe à tona a questão do aborto legal no país. "Mesmo permitido por lei, só existem 44 hospitais no Brasil com profissionais sensibilizados para atender gestantes vítimas de violência sexual", diz Rosangela Talib, pesquisadora da ONG Católicas pelo Direito de Decidir. Numa parceria com o Ministério da Saúde, a ONG vem trabalhando com equipes de hospitais públicos que possam receber casos de aborto legal, num trabalho de "sensibilização e informação". Em princípio, qualquer um dos cerca de 30 mil hospitais do país pode fazer o procedimento, mas há resistências éticas e religiosas, especialmente entre os médicos, diz Andalaft.
O ministério está implantando um programa que prevê a criação de um centro de referência para violência sexual e aborto nos municípios com mais de 50 mil habitantes. Abaixo, trechos da entrevista que o médico concedeu:

 

Folha - Por que há tão poucos serviços preparados para os casos de interrupção legal da gravidez?
Jorge Andalaft Neto -
Apesar da legalidade, muitos médicos não aceitam interromper a vida de um feto. Dos 44 hospitais, por exemplo, dez estão em São Paulo, muitos outros são universitários. A intenção do ministério de ampliar esse serviço é muito louvável, porque permite reduzir o sofrimento da mulher. Em vários Estados, por exemplo, não há nenhum hospital. Em outros, instituições tidas como referência criam dificuldades ou não possuem profissionais preparados.

Folha - Quais os limites médicos para a interrupção da gravidez?
Andalaft -
Antes tínhamos o medicamento Cytotec nos hospitais, que era utilizado até a 20ª semana para induzir o abortamento. Sem esse medicamento, pode-se utilizar a curetagem e a aspiração uterina até a 12ª semana, com segurança para a mulher. Depois resta o uso da prostraglandina, que provoca contrações e leva ao aborto. Após 20 ou no máximo 24 semanas, o feto pode nascer vivo e, com os recursos que temos agora, tem chances de sobreviver.

Folha - O que é preciso considerar quando se trata de um aborto?
Andalaft -
Primeiro, a saúde da mulher, com especial atenção para suas condições psicológicas. É fundamental tentar reduzir seu sofrimento e o da família. Se for uma interrupção por anencefalia, por estupro ou risco para a mãe, o importante é que a interrupção terapêutica seja feita o mais cedo possível. Com três meses, por exemplo, já se pode saber, com segurança, se o bebê sofre de malformação grave ou não.

Folha - Há outros casos, além da anencefalia, em que a mulher recorre à Justiça para um aborto?
Andalaft -
Há casos sofridos de gestantes com HIV e mesmo com câncer. Elas acham que vão morrer e se perguntam quem vai cuidar do seu bebê mais tarde. Outras mulheres se sentem fortalecidas, dizem "eu preciso ficar forte para cuidar do meu filho que vai nascer". Muitos juízes têm sido sinceros e compreensivos, reconhecendo que não sabem o que fazer. Num desses processos, um deles devolveu o caso para nós dizendo "vocês, médicos, são os mais indicados para julgar esse caso; eu me sinto incompetente". É por isso que a decisão do STF é muito importante, pois ele passa a decisão para o médico.


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