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MOACYR SCLIAR
O fiel da balança
Lula presidente: metalúrgico é o primeiro líder de esquerda a ser eleito no país. Brasil, 28.out.2002
Quando ficou claro que
Lula seria eleito, a primeira
reação dele foi de surpresa. Uma
surpresa que logo deu lugar à melancolia e mesmo à amargura.
Eu sempre escolho errado, era o
que estava concluindo, e, ao fazê-lo, lembrava uma longa trajetória
de opções políticas -que começara já na juventude. Rapaz pobre, tornara-se militante estudantil de esquerda. Participava
de comícios, distribuía panfletos
e, numa noite gloriosa, apanhou
da polícia. Sabia de cor o Hino da
Internacional ("De pé, ó vítimas
da fome"), lia Lênin e Stálin.
Então, em 1956, aconteceu o
congresso do Partido Comunista
na União Soviética. Os crimes do
stalinismo foram denunciados. A
princípio, ele não quis acreditar
no que lia, no que ouvia. Seus
companheiros deixaram a esquerda e ele acabou por segui-los.
Agora sou de direita, proclamava
em alto e bom som, a esquerda
não está com nada. Mas então
vieram os anos 60, a contestação,
e, no Brasil, a luta pelas reformas
de base, as Ligas Camponesas...
Sentiu despertar o esquerdista
adormecido dentro dele e até participou de comícios.
Veio o golpe militar e nova desilusão. A esquerda é incompetente
mesmo, foi o que ele concluiu, só
sabe construir castelos no ar. Resolveu aderir de vez ao capitalismo. Tornou-se empresário, explorava seus empregados sem dó
nem piedade.
Mas então a ditadura terminou. Ele presenciou a campanha
das "Diretas Já", viu o povo nas
ruas. E isso lhe dava remorsos.
Renunciei ao meu passado, pensava, vendi minha ideologia por
um prato de lentilhas.
Retornou então à esquerda,
mas não como militante, afinal,
já tinha certa idade, faltava-lhe a
audácia e a energia para tanto e,
além disso, estava com pressão alta. Mas votou no Lula.
Que perdeu as eleições. Mais do
que isso, começava a globalização, e o neoliberalismo, e o Consenso de Washington; o mundo
estava mudando, ele teria de mudar também. Você troca de opiniões como quem troca de camisa, observou a esposa, e ele retrucou, irritado, que não lhe faltavam camisas para mudar. Nem
gravatas, nem ternos. Voltara a
ser um ativo empresário, e também um investidor: colocava todo
o seu dinheiro na Bolsa de Valores. Quando Lula se candidatou
pela quarta vez, ele riu: esse aí é
um perdedor, garantiu a um amigo.
A Bolsa desabou, o dólar subiu,
Lula ganhou. Ele ficou muito deprimido. Se eu aposto na esquerda, pensava, dá a direita, se eu
aposto na direita; a esquerda vence. E de repente uma idéia lhe
ocorreu: aquela estranha capacidade de errar dava-lhe um inusitado poder de premonição. Agora
sabia exatamente o que fazer: cada vez que sentisse vontade de
unir-se à direita, deveria, ao contrário, optar pela esquerda.
A menos, naturalmente, que
fosse ele o pé-frio. A menos que
fosse ele o fiel da balança, colocado no mundo por uma entidade
misteriosa para decidir os rumos
do país e da humanidade. A menos que suas próprias opções fossem governadas por essa vontade
superior. Nesse caso, só lhe restaria passar o resto dos seus dias jogando paciência.
O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.
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