São Paulo, segunda-feira, 04 de novembro de 2002

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MOACYR SCLIAR

O fiel da balança

Lula presidente: metalúrgico é o primeiro líder de esquerda a ser eleito no país. Brasil, 28.out.2002

Quando ficou claro que Lula seria eleito, a primeira reação dele foi de surpresa. Uma surpresa que logo deu lugar à melancolia e mesmo à amargura.
Eu sempre escolho errado, era o que estava concluindo, e, ao fazê-lo, lembrava uma longa trajetória de opções políticas -que começara já na juventude. Rapaz pobre, tornara-se militante estudantil de esquerda. Participava de comícios, distribuía panfletos e, numa noite gloriosa, apanhou da polícia. Sabia de cor o Hino da Internacional ("De pé, ó vítimas da fome"), lia Lênin e Stálin.
Então, em 1956, aconteceu o congresso do Partido Comunista na União Soviética. Os crimes do stalinismo foram denunciados. A princípio, ele não quis acreditar no que lia, no que ouvia. Seus companheiros deixaram a esquerda e ele acabou por segui-los. Agora sou de direita, proclamava em alto e bom som, a esquerda não está com nada. Mas então vieram os anos 60, a contestação, e, no Brasil, a luta pelas reformas de base, as Ligas Camponesas... Sentiu despertar o esquerdista adormecido dentro dele e até participou de comícios.
Veio o golpe militar e nova desilusão. A esquerda é incompetente mesmo, foi o que ele concluiu, só sabe construir castelos no ar. Resolveu aderir de vez ao capitalismo. Tornou-se empresário, explorava seus empregados sem dó nem piedade.
Mas então a ditadura terminou. Ele presenciou a campanha das "Diretas Já", viu o povo nas ruas. E isso lhe dava remorsos. Renunciei ao meu passado, pensava, vendi minha ideologia por um prato de lentilhas.
Retornou então à esquerda, mas não como militante, afinal, já tinha certa idade, faltava-lhe a audácia e a energia para tanto e, além disso, estava com pressão alta. Mas votou no Lula.
Que perdeu as eleições. Mais do que isso, começava a globalização, e o neoliberalismo, e o Consenso de Washington; o mundo estava mudando, ele teria de mudar também. Você troca de opiniões como quem troca de camisa, observou a esposa, e ele retrucou, irritado, que não lhe faltavam camisas para mudar. Nem gravatas, nem ternos. Voltara a ser um ativo empresário, e também um investidor: colocava todo o seu dinheiro na Bolsa de Valores. Quando Lula se candidatou pela quarta vez, ele riu: esse aí é um perdedor, garantiu a um amigo.
A Bolsa desabou, o dólar subiu, Lula ganhou. Ele ficou muito deprimido. Se eu aposto na esquerda, pensava, dá a direita, se eu aposto na direita; a esquerda vence. E de repente uma idéia lhe ocorreu: aquela estranha capacidade de errar dava-lhe um inusitado poder de premonição. Agora sabia exatamente o que fazer: cada vez que sentisse vontade de unir-se à direita, deveria, ao contrário, optar pela esquerda.
A menos, naturalmente, que fosse ele o pé-frio. A menos que fosse ele o fiel da balança, colocado no mundo por uma entidade misteriosa para decidir os rumos do país e da humanidade. A menos que suas próprias opções fossem governadas por essa vontade superior. Nesse caso, só lhe restaria passar o resto dos seus dias jogando paciência.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.

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