São Paulo, quinta-feira, 04 de dezembro de 2008

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PASQUALE CIPRO NETO

Ouro Preto, Bahia-Minas, Lisboa...


A gramática classifica como "indeterminado" o sujeito de certas formas verbais, mas o conhecimento de mundo...

NO INÍCIO DE NOVEMBRO, tive a subida honra de participar do Fórum das Letras de Ouro Preto, a convite da professora e escritora Guiomar de Grammont.
Mediada pelo escritor Jorge Fernando dos Santos, a mesa de que participei (cujo tema era "O Mistério do Encontro entre Letra e Música") contou com a presença do compositor Celso Adolfo ("Coração Brasileiro", "Brasil, Nome de Vegetal" e outras maravilhas) e do cronista e letrista Fernando Brant ("Travessia", "Canção da América" etc.).
Ouro Preto (MG) está linda! Quase tudo foi ou está sendo restaurado, hotéis e restaurantes melhoraram muito, e Villa Rica finalmente faz jus ao título de "cidade histórica", "Patrimônio da Humanidade" etc.
Pois bem. No Fórum, Fernando Brant lembrou o que o levou a escrever a pungente letra de "Ponta de Areia". Quando era repórter da histórica revista "O Cruzeiro", Brant fez uma matéria sobre a extinção da ferrovia "Bahia-Minas". Algum tempo depois, transformou sabiamente a reportagem em letra, cuja melodia é de Bituca, isto é, Milton Nascimento: "Ponta de Areia, ponto final da Bahia-Minas, estrada natural, que ligava Minas ao porto, ao mar, caminho de ferro, mandaram arrancar".
Estivesse o caro leitor numa prova "tradicional" de análise sintática, o que teria de responder se lhe perguntassem qual o sujeito de "mandaram arrancar"? Lembra a resposta? É "indeterminado". Uma das situações em que as gramáticas classificam o sujeito como "indeterminado" é justamente a que ocorre em "Mandaram arrancar", em que o verbo, flexionado na terceira pessoa do plural, não se refere a nenhum elemento explicitado no texto. Trata-se de um recurso de que o falante dispõe quando não pode, não quer ou não precisa determinar o agente do processo expresso pelo verbo.
Numa frase como "Disseram que eu voltei americanizada" (título de uma canção de Luís Peixoto e Vicente Paiva), por exemplo, a quem se refere a forma verbal "disseram"?
Àqueles (sabe Deus quantos) que criticaram Carmen Miranda depois de sua volta dos Estados Unidos.
Embora a gramática classifique como "indeterminado" o sujeito de "disseram", o contexto e o conhecimento de mundo nos mostram que há um endereço certo para o processo que essa forma verbal expressa.
Pode-se fazer afirmação semelhante em relação a "mandaram arrancar", da letra de "Ponta de Areia".
Limitássemos a coisa à análise sintática simplória e obtusa, diríamos que o sujeito de "mandaram arrancar" é "indeterminado", mas a história nos diz outra coisa. A mando da "metrópole" (os interesses das multinacionais que fabricavam caminhões e ônibus), a colônia (o Brasil) vivia o desmonte (imposto pelo governo militar) da malha ferroviária.
A extinção do trecho Bahia-Minas foi só mais um capítulo desse crime.
O agente do processo expresso em "mandaram arrancar", portanto, é determinadíssimo, como também o é em "Já murcharam tua festa, pá, mas certamente esqueceram uma semente nalgum canto do jardim" (da antológica "Tanto Mar", de Chico Buarque -a letra, que se refere à "Revolução dos Cravos", foi proibida pelo governo militar). O agente da forma verbal destacada é representado por aqueles que, na visão do poeta, deram à revolução portuguesa um caminho diferente do apresentado inicialmente.
Gramática sem contextualização é nada, é zero à esquerda. É isso.

inculta@uol.com.br


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