São Paulo, terça-feira, 05 de março de 2002

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MARILENE FELINTO

Monstro e Andinho

Neste exato momento na favela Pantanal, em São Paulo, e na favela do São Fernando, em Campinas -como em milhares de outras Brasil afora-, continua a "minhocar, a fervilhar, a crescer um mundo, uma coisa viva, uma geração" que parece "brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro e multiplicar-se como larvas no esterco". A descrição é de Aluísio de Azevedo em "O Cortiço", de 1890, mas perfeita para hoje.
No esterco da favela Pantanal (divisa de Diadema com São Bernardo do Campo, Grande São Paulo), naquele inferno de becos e barracos fedendo a esgoto e ferida aberta, é que teriam se reproduzido as larvas de criminosos brutais como os que estão sendo acusados de terem sequestrado e matado o prefeito de Santo André, Celso Daniel, em janeiro.
No esterco da favela do São Fernando (centro de Campinas) é que foi gestada a coisa viva chamada Andinho, um dos mais desumanos marginais já apresentados ao telespectador pela TV. Identificação verdadeira: Wanderson de Paula Lima, 23.
Última cena que dirigiu: a libertação das irmãs Sônia Zabani e Roseana Batagin, sequestradas em Americana (SP) e encontradas amordaçadas e amarradas feito bichos em um matagal do interior.
Foi nos últimos dez anos que Andinho virou bandido de alta periculosidade, sequestrador de primeira linha, apoiado inclusive por policiais. Foi nos últimos dez anos que todos os integrantes da quadrilha da favela Pantanal brotaram da lama, todos com menos de 30 anos de idade e apelidos de uma precisão descritiva impressionante (basta ver as fotos, as caras deles na TV): Monstro (Ivan Rodrigues da Silva, 27), Olho de Gato (Itamar Messias dos Santos, 22), Cara Seca (Andrelisom dos Santos Oliveira, 23), Cara de Gato (Juscelino da Costa Barros, 22), Sapeco (Deivid dos Santos Barbosa, 20), Bozinho (Rodolfo Rodrigo dos Santos Oliveira, 20), Cabeção (Manoel Dantas de Santana Filho, 29), os supostos matadores de Celso Daniel.
Foi nos últimos dez anos que eles entraram para o crime, aos 12, 13 anos de idade. Dez anos é pouco tempo. Foi ontem. Foi bem perto daqui. Onde estava a chamada "sociedade civilizada" nestes dez anos? Assistindo passiva à reprodução dessas larvas, à geração dessas monstruosidades, meio distraída, "protegida" na mesquinharia de seus lares, acumulando bens e capital no egoísmo de seus gabinetes e escritórios.
Uma das irmãs sequestradas por Andinho disse na TV que tem vergonha de ser brasileira. Está certa. Brasileiros deixam brasileiros virarem anomalias sociais. É uma gente que vive numa espécie de torpor moral, no pior espírito do cada um por si.
"Ele não conhece o outro lado da sociedade. A sociedade dele é o crime", disse um delegado sobre o sequestrador Andinho. Ou seja, Andinho é um monstro porque formou-se na monstruosidade, oprimido por muitos gêneros de violência.
Em 1994, quando provavelmente estava sendo gestada na favela Pantanal a quadrilha de Monstro, o lugar já era notícia pela barbárie que experimentava: naquele ano, foi preso um grupo de exterminadores que fazia o papel de polícia na favela; entre suas vítimas, uma mulher que teve os seios cortados e um homem cuja língua foi arrancada.
Também em 1994 já se contabilizava entre a população favelada de São Paulo um homicídio a cada 30 horas e uma agressão a cada 14 horas. Nesse ambiente cresceram Monstro, Olho de Gato, Cara Seca, Andinho e outras aberrações sociais que hoje assombram a enlameada sociedade civilizada brasileira. E a coisa continua a se reproduzir, viva, no esterco.

E-mail - mfelinto@uol.com.br



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