São Paulo, segunda-feira, 05 de junho de 2006

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MOACYR SCLIAR

A Copa como teste

Se o marido notar a ausência, a infidelidade ficará limitada a este episódio. Se não notar, irá adiante, até o divórcio

A febre da Copa atingiu um ponto insustentável na Holanda. Pelo menos, essa é a opinião de algumas mulheres, que não agüentam mais a obsessão de seus maridos e namorados pelo evento futebolístico. Incomodadas, elas se reuniram e criaram um manifesto, publicado em um site, "para livrar a Holanda da Copa de uma vez por todas". Querem encorajar outras mulheres a mudarem as mentalidades dos parceiros, ensinando-os que a vida não é só futebol. "Os homens ficam grudados na TV, esquecendo-se de nós e de tudo. Eles acham que as mulheres não entendem o jogo e só servem para servir cerveja e petiscos." Folha Online, 29/5

"POSSO ENTENDER perfeitamente a bronca das holandesas", ela escreveu em seu diário. E pode entender porque vive o mesmo drama: o marido, com quem está casada há 24 anos, é fanático por futebol. Esporte que ela detesta, e por boas razões: o pai, já falecido, dizia-se torcedor fanático de um obscuro time. Quando havia jogo, ele saía à tarde e voltava só de madrugada. Não ficava em casa nem mesmo quando alguém da família estava doente. "É uma coisa que a gente tem de aceitar, minha filha", suspirava a resignada mãe. Mas ela não aceitava. Quando começou a namorar o marido, a primeira coisa que perguntou foi se freqüentava estádios. Ele riu, disse que não: torcia para um time, mas não ia aos jogos, nem sequer os assistia pela TV. Afinal, não era fanático. E não era mesmo. Fanático foi ficando com o correr dos anos. Agora, vai a todas as partidas do time, de cuja direção, aliás, faz parte. Na véspera do jogo nem dorme direito, tamanha sua emoção. Em suma, parece ter mais paixão pelo esporte do que pela própria mulher. Com a proximidade da Copa, a irritação dela foi num crescendo: já podia antecipar a histeria do marido torcendo pelo Brasil e as brigas que daí surgiriam. Mas de repente descobriu um aliado. Um aliado, não: um amigo, um confidente. Chama-se Mário, ele. Os dois trabalham na mesma empresa. Conhecem-se há pouco tempo -Mário morava no interior- mas convivem bastante, almoçam juntos, conversam longamente. Descobriram que têm muitas coisas em comum: gostam de livros, de cinema. E têm uma aversão em comum: o futebol. Que ele detesta. Diz que nunca entrou num estádio e nunca o fará. E como apoio à sua opinião, cita o escritor Lima Barreto, que escreveu vários artigos contra o futebol (para ele um grotesco esporte que os ingleses tentavam introduzir no Brasil). Ela o ouve fascinada. Não: ela o ouve apaixonada. Porque, nos últimos tempos, a afinidade já não era só isso, afinidade. Era mais. Amor? Talvez. Talvez ela esteja apaixonada pelo Mário, que é um charmoso solteirão. Se for paixão, tem certeza de que será correspondida. Na verdade só não transformou a amizade em caso amoroso porque tem sentimentos de culpa em relação ao marido. Mas bem que pode usar a Copa como um teste. Quando o Brasil estiver jogando, ela se ausentará de casa e irá até o apartamento do Mário. Se o marido notar sua ausência, a infidelidade ficará limitada a este único episódio. Se não notar, irá adiante, até o divórcio, quem sabe. Parece bem bolado, o teste. Só de uma coisa ela tem medo. Teme que, ao ouvir os gritos de "Gol!", Mário salte da cama e, nu, corra para o televisor. Com o que ela perderá seu derradeiro aliado. E sua derradeira esperança.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha

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