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MOACYR SCLIAR
A Copa como teste
Se o marido notar a ausência, a infidelidade ficará limitada a este episódio. Se não notar, irá adiante, até o divórcio
A febre da Copa atingiu um ponto insustentável na Holanda. Pelo menos, essa é
a opinião de algumas mulheres, que não
agüentam mais a obsessão de seus maridos e namorados pelo evento futebolístico. Incomodadas, elas se reuniram e
criaram um manifesto, publicado em um
site, "para livrar a Holanda da Copa de
uma vez por todas". Querem encorajar
outras mulheres a mudarem as mentalidades dos parceiros, ensinando-os que a
vida não é só futebol. "Os homens ficam
grudados na TV, esquecendo-se de nós e
de tudo. Eles acham que as mulheres não
entendem o jogo e só servem para servir
cerveja e petiscos." Folha Online, 29/5
"POSSO ENTENDER perfeitamente a bronca das holandesas", ela escreveu
em seu diário. E pode entender porque vive o mesmo drama: o marido,
com quem está casada há 24 anos, é
fanático por futebol. Esporte que ela
detesta, e por boas razões: o pai, já
falecido, dizia-se torcedor fanático
de um obscuro time. Quando havia
jogo, ele saía à tarde e voltava só de
madrugada. Não ficava em casa nem
mesmo quando alguém da família
estava doente. "É uma coisa que a
gente tem de aceitar, minha filha",
suspirava a resignada mãe.
Mas ela não aceitava. Quando começou a namorar o marido, a primeira coisa que perguntou foi se freqüentava estádios. Ele riu, disse que
não: torcia para um time, mas não ia
aos jogos, nem sequer os assistia pela TV. Afinal, não era fanático.
E não era mesmo. Fanático foi ficando com o correr dos anos. Agora,
vai a todas as partidas do time, de cuja direção, aliás, faz parte. Na véspera do jogo nem dorme direito, tamanha sua emoção. Em suma, parece
ter mais paixão pelo esporte do que
pela própria mulher.
Com a proximidade da Copa, a irritação dela foi num crescendo: já
podia antecipar a histeria do marido
torcendo pelo Brasil e as brigas que
daí surgiriam. Mas de repente descobriu um aliado. Um aliado, não:
um amigo, um confidente.
Chama-se Mário, ele. Os dois trabalham na mesma empresa. Conhecem-se há pouco tempo -Mário
morava no interior- mas convivem
bastante, almoçam juntos, conversam longamente. Descobriram que
têm muitas coisas em comum: gostam de livros, de cinema. E têm uma
aversão em comum: o futebol.
Que ele detesta. Diz que nunca entrou num estádio e nunca o fará.
E como apoio à sua opinião, cita o
escritor Lima Barreto, que escreveu
vários artigos contra o futebol (para
ele um grotesco esporte que os
ingleses tentavam introduzir no
Brasil).
Ela o ouve fascinada. Não: ela o
ouve apaixonada. Porque, nos últimos tempos, a afinidade já não era
só isso, afinidade. Era mais. Amor?
Talvez. Talvez ela esteja apaixonada
pelo Mário, que é um charmoso solteirão. Se for paixão, tem certeza
de que será correspondida. Na verdade só não transformou a amizade
em caso amoroso porque tem sentimentos de culpa em relação ao
marido.
Mas bem que pode usar a Copa como um teste. Quando o Brasil estiver jogando, ela se ausentará de casa
e irá até o apartamento do Mário. Se
o marido notar sua ausência, a infidelidade ficará limitada a este único
episódio. Se não notar, irá adiante,
até o divórcio, quem sabe.
Parece bem bolado, o teste. Só de
uma coisa ela tem medo. Teme que,
ao ouvir os gritos de "Gol!", Mário
salte da cama e, nu, corra para o televisor. Com o que ela perderá seu
derradeiro aliado. E sua derradeira
esperança.
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha
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