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COTIDIANO IMAGINÁRIO
Meu pai, meu pai, por que me abandonaste
MOACYR SCLIAR
Garoto engana NY com história
falsa: hondurenho de 13 anos conquistou a mídia e o prefeito da cidade com suposta viagem à procura do paiMundo, 1º.jul.99
Nós acreditamos na história
dele porque queríamos acreditar, disse um jornalista, e era
verdade: nada mais autêntico
-e nada mais comovente-
do que o relato do garoto em
busca do pai. As lágrimas que
corriam pelo rosto dele, enquanto narrava sua saga de
4.800 km, abalariam o mais
empedernido coração. Na
grande sala em que se encontrava, rodeado por jornalistas,
por autoridades e por muitos
curiosos, os soluços se faziam
ouvir a toda hora. Uma grande cadeia de solidariedade se
havia formado. As redes de televisão comprometeram-se a
divulgar a foto do pai, apelando para que viesse ao encontro
do filho. Se assim o fizesse, teria um excelente emprego assegurado, prometia uma conhecida corporação. Uma indústria de alimentos garantia-lhes o fornecimento de gêneros
até o ano 3000.
No auge dessa onda de generosa solidariedade, um homem entrou correndo na sala
e segredou algo ao ouvido do
prefeito. Ele imediatamente
empalideceu. Não pode ser,
ouviram-no murmurar. Mas o
emissário mostrou-lhe um fax,
e ele, aparentemente convencido, pegou o microfone e, depois de relutar um segundo,
fez a comunicação que teve o
impacto de uma bomba: a história do menino era falsa. Não
viera em busca do pai, porque
tal pai não mais existia, morrera de Aids meses antes.
É mentira, protestou debilmente o menino, meu pai está
vivo, eu sei que ele está vivo,
isso é intriga de minha avó, ela
nunca gostou dele, por isso inventa essas histórias. Mas as
evidências eram fortes demais
e num instante a sala se esvaziou: ninguém mais queria se
comprometer com um garoto
que inventava coisas absurdas
e até perigosas. O garoto ficou
sozinho, acompanhado somente de um policial, encarregado de encerrar, o mais rapidamente possível, o caso.
- Vamos, rapaz - disse o
homem, e conduziu-o até a
porta do prédio. Quando ali
chegaram, o menino recuou:
uma pequena multidão se
comprimia na rua, ansiosa por
ver o mentiroso do século. Por
um momento, o garoto ficou
imóvel, atarantado, prestes a
cair em pranto. De repente seu
rosto se iluminou: acabara de
avistar, no meio daquelas pessoas, o seu pai. Que piscou o
olho, sorriu e desapareceu.
O menino deixou-se levar.
Nada podia dizer quanto ao
que havia passado, mas estava
certo do que aconteceria no futuro: um dia cresceria e se tornaria um escritor. Contaria a
história do garoto que foi em
busca do pai. E essa história faria milhões chorarem pelo
mundo afora.
O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras um texto de ficção baseado em
notícias publicadas no jornal.
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