São Paulo, Segunda-feira, 05 de Julho de 1999
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COTIDIANO IMAGINÁRIO
Meu pai, meu pai, por que me abandonaste

MOACYR SCLIAR

Garoto engana NY com história falsa: hondurenho de 13 anos conquistou a mídia e o prefeito da cidade com suposta viagem à procura do paiMundo, 1º.jul.99
Nós acreditamos na história dele porque queríamos acreditar, disse um jornalista, e era verdade: nada mais autêntico -e nada mais comovente- do que o relato do garoto em busca do pai. As lágrimas que corriam pelo rosto dele, enquanto narrava sua saga de 4.800 km, abalariam o mais empedernido coração. Na grande sala em que se encontrava, rodeado por jornalistas, por autoridades e por muitos curiosos, os soluços se faziam ouvir a toda hora. Uma grande cadeia de solidariedade se havia formado. As redes de televisão comprometeram-se a divulgar a foto do pai, apelando para que viesse ao encontro do filho. Se assim o fizesse, teria um excelente emprego assegurado, prometia uma conhecida corporação. Uma indústria de alimentos garantia-lhes o fornecimento de gêneros até o ano 3000.
No auge dessa onda de generosa solidariedade, um homem entrou correndo na sala e segredou algo ao ouvido do prefeito. Ele imediatamente empalideceu. Não pode ser, ouviram-no murmurar. Mas o emissário mostrou-lhe um fax, e ele, aparentemente convencido, pegou o microfone e, depois de relutar um segundo, fez a comunicação que teve o impacto de uma bomba: a história do menino era falsa. Não viera em busca do pai, porque tal pai não mais existia, morrera de Aids meses antes.
É mentira, protestou debilmente o menino, meu pai está vivo, eu sei que ele está vivo, isso é intriga de minha avó, ela nunca gostou dele, por isso inventa essas histórias. Mas as evidências eram fortes demais e num instante a sala se esvaziou: ninguém mais queria se comprometer com um garoto que inventava coisas absurdas e até perigosas. O garoto ficou sozinho, acompanhado somente de um policial, encarregado de encerrar, o mais rapidamente possível, o caso.
- Vamos, rapaz - disse o homem, e conduziu-o até a porta do prédio. Quando ali chegaram, o menino recuou: uma pequena multidão se comprimia na rua, ansiosa por ver o mentiroso do século. Por um momento, o garoto ficou imóvel, atarantado, prestes a cair em pranto. De repente seu rosto se iluminou: acabara de avistar, no meio daquelas pessoas, o seu pai. Que piscou o olho, sorriu e desapareceu.
O menino deixou-se levar. Nada podia dizer quanto ao que havia passado, mas estava certo do que aconteceria no futuro: um dia cresceria e se tornaria um escritor. Contaria a história do garoto que foi em busca do pai. E essa história faria milhões chorarem pelo mundo afora.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.




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