São Paulo, domingo, 05 de setembro de 2004

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GILBERTO DIMENSTEIN

A melhor obra de Marta não tem dono

Nada melhorou tanto na cidade de São Paulo como a sua região central, por onde circulam 2 milhões de pessoas por dia. O bárbaro assassinato dos moradores de rua é um acidente de percurso e não deveria simbolizar a tendência do centro.
Pode-se até dizer que persistem graves problemas e que ainda levará muito tempo até que sejam resolvidos. Correto. Mas nenhuma outra ação pública apresenta um modelo administrativo tão promissor no município como a revitalização da área central.
Em termos de gerência de políticas públicas, é a mais consistente obra de que Marta Suplicy participa, mas é uma obra que não tem "dono". Justamente por isso é a mais consistente: envolve uma complexa teia de vários segmentos dos governos municipal, estadual e federal, bem como de empresas estatais e, acima de tudo, da comunidade.
As ruas estão mais limpas e policiadas. Há menos camelôs devido a uma ação do Ministério Público, acatada pela prefeitura. Reformaram-se prédios residenciais e comerciais. Alargaram-se calçadas. Praças e jardins estão mais conservados com o apoio de empresas privadas.
Há duas semanas, a cidade ganhou um novo Mercado Municipal, capaz de se transformar num pólo de gastronomia. Na terça-feira, ganhou também mais um espaço cultural, voltado à dança e às artes plásticas contemporâneas, num prédio abandonado em que funcionou, no passado, um cinema (Olido). A cem metros dali, o Sesc comprou um enorme prédio (antiga Mesbla) para fazer uma unidade com esporte, cultura e lazer.
Graças a esses esforços, somados à infra-estrutura disponível, a melhoria se traduz em números: começam a escassear os imóveis disponíveis, pois a região vem atraindo moradores, empresas e faculdades.
Naquele cenário marcado no final de mês passado por uma das cenas mais bárbaras da história social paulistana -a matança dos moradores de rua-, ocorre, ao mesmo tempo, o melhor exemplo disponível de articulação comunitária da cidade.
Há 13 anos, um grupo de indivíduos, todos fora do governo, iniciou um movimento contra a veloz deterioração da região -um caminho que parecia sem volta. Chamaram arquitetos e especialistas para estudar as soluções encontradas em Nova York, Berlim, Roma, Buenos Aires e Barcelona. Sensibilizaram autoridades para a importância de as cidades terem os seus centros históricos respeitados. Conseguiram mudar leis e criar programas de incentivo fiscal.
Na pior das áreas, a chamada "cracolândia", dominada pelo crack, uma estação de trem virou uma das mais qualificadas salas de concerto do mundo. O local em que funcionava o Deops, um dos símbolos da barbárie, virou um museu. Ali, na terça passada, por exemplo, foi inaugurada uma exposição com alguns dos quadros que refletem o que há de melhor na arte moderna brasileira.
Na frente do antigo Deops, um prédio passou a abrigar uma escola de música. A poucos metros dali, surgiu, há alguns anos, a nova Pinacoteca, na frente da qual a estação da Luz se prepara para ser um memorial dedicado à língua portuguesa e o local de entroncamento de vários tipos de transporte. Não é pouco que um lugar povoado pelo crack comece a se notabilizar pela beleza das artes.
Essas são apenas intervenções, algumas das quais em parceria com a iniciativa privada, conduzidas pelo governo estadual, cujas repartições estão se mudando para o centro. Montou-se até mesmo um gabinete do governador.
A Petrobras, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal ergueram centros culturais ou apoiaram projetos de reforma de imóveis; está em reforma, também com finalidade cultural, a sede dos Correios.
A prefeitura se mudou para o viaduto do Chá e a sua antiga sede vai virar um museu. Quase todas as secretarias municipais se mudaram para o centro. Um empréstimo internacional (BID) assegura que, nos próximos anos, haverá mais melhorias, como a reforma de parques, viadutos e praças, além de mais programas sociais.
Se alguém tiver de estudar como uma política pública pode gerar resultados, basta analisar a engenharia administrativa do centro. Como tudo o que é consistente, demora, passa de um governo para outro e, mais, exige as seguintes peças: comunidade articulada, com apoio acadêmico e atuação em rede da prefeitura, condutora principal, com as mais diversas peças do governo estadual e da União.
O PT de Marta pode se vangloriar dos resultados e não estará iludindo ninguém. Mas o PSDB de Serra também pode se orgulhar. Ambos, porém, devem reconhecer que, sem a mobilização comunitária, o governo não teria de que se vangloriar. Essa falta de autoria personalizada explica por que a recuperação do centro não é um dos principais tópicos da propaganda eleitoral. É o que de melhor se fez e o de que menos, por enquanto, se fala.
Na região em que São Paulo nasceu como uma escola, está sendo produzida a melhor lição de inteligência comunitária -a começar, aliás, do revigorado Pátio do Colégio.
PS - Um dos melhores presentes já dados à cidade de São Paulo foi a coleção de arte moderna da família Nemirovsky. Cedida à Estação Pinacoteca, que fica no prédio do antigo Deops, dela faz parte, por exemplo, o quadro "Antropofagia", de Tarsila do Amaral, que agora integra a mostra "Mestres do Modernismo". É, no mínimo, ótimo pretexto para fazer a visita ao centro e aproveitar para checar a consistência desta coluna.

E-mail - gdimen@uol.com.br

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