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MARILENE FELINTO
A jararaca, o procurador da República e o poeta
Dessa vez tentaram pegar
o procurador da República,
em Brasília, Luiz Francisco de
Souza. "Enrolado em fitas", disseram dele, que já é tratado como
"esquisito" pela imprensa, pela
mídia televisiva, pela politicalha
da capital.
Já disseram de tudo sobre o
combativo procurador, retraído
até na postura física, na voz. Mostraram na TV que ele dirige um
Fusca velho, contaram que foi seminarista, atacam sua vida pessoal e dizem que quer aparecer.
Isso só reflete um detestável sociocentrismo, tendência que as
pessoas têm de considerar o seu
próprio grupo como uma norma
padrão, e de criar expectativas de
imagem de classe a que se deve
corresponder -o modelo de poder, prestígio, dinheiro, comportamento e até relacionamento
amoroso esperado.
Uma hipocrisia impossível de
ser compartilhada pelos que disso
divergem, os solitários sem grupo.
Minha simpatia é toda para eles.
O procurador me lembra o poeta.
"Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou", dizia
Fernando Pessoa. Sempre achei
uma dor visitar Lisboa por causa
da lembrança desse poeta que
não teve reconhecimento em vida, que vivia sozinho em quartos
alugados e que expressou como
ninguém a angústia e as contradições do homem moderno.
Sempre achei uma dor visitar
Lisboa também por causa daquele monumento em mármore
branco, em forma de caravela,
que os portugueses chamam de
Padrão dos Descobrimentos.
Fica bem na beira do rio Tejo,
que se alarga para o oceano
Atlântico. É lindo. Dali saíram as
caravelas que descobriram o Brasil e que, de um modo ou de outro,
me arremessaram para este único
destino de hoje. Por que não para
outro? Lisboa desperta esse tipo
de pergunta sem resposta. Todas
as três vezes em que fui àquela cidade quis visitar uma vez mais
esse lugar fatal, e o restaurante-bar frequentado por Pessoa, ele
que se sentava à beira daquele
mesmo Tejo e fazia suas conjeturas de profundo niilismo existencial: "Passo horas, às vezes, no
Terreiro do Paço, à beira do rio,
meditando em vão."
Sempre observei aqui de longe o
trabalho do procurador Luiz
Francisco de Souza -que acho
impecável, honesto, anormal somente no que esse termo designa
"extrema superioridade".
Se Fernando Pessoa foi, como
disse um crítico, um "indisciplinador de almas", alguém capaz
de sacudir a cristalizada e estéril
poesia portuguesa de seu tempo, o
procurador Luiz Francisco -em
que pese a comparação forçada- é um "indisciplinador" da
ideologia da corrupção, da falta
de ética, da ladroagem que norteia a politicalha da República.
Por falar em isolamento, um
novo tipo de jararaca foi descoberto no arquipélago de Alcatrazes, litoral norte de São Paulo. É a
jararaca-de-alcatrazes, que só
existe ali. Ela é menor do que a jararaca brasileira comum, tem cor
mais escura, olhos grandes, diferenças no número e na forma das
escamas.
Os cientistas acham que essas
características podem ter surgido
da adaptação à única dieta disponível na ilha -centopéias e lagartos. Ali não há os pequenos
mamíferos de que as jararacas comuns se alimentam. A espécie nova pode ter se originado do isolamento, há pelo menos 11 mil anos,
de populações ancestrais de jararacas comuns, pela elevação do
nível das águas do mar.
Como se vê, a solidão e a ilha
não matam. Geram novas espécies. Os seres se adaptam. Ou, como dizia o poeta, escrevem. "Escrever é esquecer. A literatura é a
maneira mais agradável de esquecer a vida."
E-mail - mfelinto@uol.com.br
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