São Paulo, terça-feira, 06 de março de 2001

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MARILENE FELINTO

A jararaca, o procurador da República e o poeta

Dessa vez tentaram pegar o procurador da República, em Brasília, Luiz Francisco de Souza. "Enrolado em fitas", disseram dele, que já é tratado como "esquisito" pela imprensa, pela mídia televisiva, pela politicalha da capital.
Já disseram de tudo sobre o combativo procurador, retraído até na postura física, na voz. Mostraram na TV que ele dirige um Fusca velho, contaram que foi seminarista, atacam sua vida pessoal e dizem que quer aparecer.
Isso só reflete um detestável sociocentrismo, tendência que as pessoas têm de considerar o seu próprio grupo como uma norma padrão, e de criar expectativas de imagem de classe a que se deve corresponder -o modelo de poder, prestígio, dinheiro, comportamento e até relacionamento amoroso esperado.
Uma hipocrisia impossível de ser compartilhada pelos que disso divergem, os solitários sem grupo. Minha simpatia é toda para eles. O procurador me lembra o poeta. "Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou", dizia Fernando Pessoa. Sempre achei uma dor visitar Lisboa por causa da lembrança desse poeta que não teve reconhecimento em vida, que vivia sozinho em quartos alugados e que expressou como ninguém a angústia e as contradições do homem moderno.
Sempre achei uma dor visitar Lisboa também por causa daquele monumento em mármore branco, em forma de caravela, que os portugueses chamam de Padrão dos Descobrimentos.
Fica bem na beira do rio Tejo, que se alarga para o oceano Atlântico. É lindo. Dali saíram as caravelas que descobriram o Brasil e que, de um modo ou de outro, me arremessaram para este único destino de hoje. Por que não para outro? Lisboa desperta esse tipo de pergunta sem resposta. Todas as três vezes em que fui àquela cidade quis visitar uma vez mais esse lugar fatal, e o restaurante-bar frequentado por Pessoa, ele que se sentava à beira daquele mesmo Tejo e fazia suas conjeturas de profundo niilismo existencial: "Passo horas, às vezes, no Terreiro do Paço, à beira do rio, meditando em vão."
Sempre observei aqui de longe o trabalho do procurador Luiz Francisco de Souza -que acho impecável, honesto, anormal somente no que esse termo designa "extrema superioridade".
Se Fernando Pessoa foi, como disse um crítico, um "indisciplinador de almas", alguém capaz de sacudir a cristalizada e estéril poesia portuguesa de seu tempo, o procurador Luiz Francisco -em que pese a comparação forçada- é um "indisciplinador" da ideologia da corrupção, da falta de ética, da ladroagem que norteia a politicalha da República.
Por falar em isolamento, um novo tipo de jararaca foi descoberto no arquipélago de Alcatrazes, litoral norte de São Paulo. É a jararaca-de-alcatrazes, que só existe ali. Ela é menor do que a jararaca brasileira comum, tem cor mais escura, olhos grandes, diferenças no número e na forma das escamas.
Os cientistas acham que essas características podem ter surgido da adaptação à única dieta disponível na ilha -centopéias e lagartos. Ali não há os pequenos mamíferos de que as jararacas comuns se alimentam. A espécie nova pode ter se originado do isolamento, há pelo menos 11 mil anos, de populações ancestrais de jararacas comuns, pela elevação do nível das águas do mar.
Como se vê, a solidão e a ilha não matam. Geram novas espécies. Os seres se adaptam. Ou, como dizia o poeta, escrevem. "Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de esquecer a vida."
E-mail - mfelinto@uol.com.br


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