São Paulo, quinta-feira, 06 de abril de 2006

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PASQUALE CIPRO NETO

Quadrilha

No texto da semana passada ("Danço eu, dança você na dança da solidão"), havia esta passagem: "Na verdade, já há quem diga que, com aquela dança, a deputada já dançou, talvez não neste mandato (ela certamente teria a seu lado inúmeros deputados-dançarinos, que a poupariam da guilhotina), mas provavelmente no próximo".
Pois bem. No momento em que escrevi essa passagem, veio-me à mente o poema "Quadrilha", de Carlos Drummond de Andrade. O nome do poema é sugestivo, eu sei, mas não foi pelo que o título sugere que pensei nessa magnífica obra -na verdade, o texto nada tem que ver com o "lado criminoso" da palavra "quadrilha". O poema se refere à dança mesmo, em que, mal se formam, os pares se desfazem. Na obra de Drummond, os pares nem se formam.
Foi pela estrutura do poema que pensei nele. Não custa relembrá-lo: "João amava Teresa que amava Raimundo / que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili / que não amava ninguém. / João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, / Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, / Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes / que não tinha entrado na história".
Diferentemente do que sugeria uma infeliz paródia do poema usada em uma publicidade institucional sobre a Aids veiculada há alguns anos (em que A se deitava com B, que se deitava com C, que se deitava com D -o resultado dessa promiscuidade era a Aids), no poema de Drummond ninguém concretiza o que sente, ou seja, não se forma nenhum par -à exceção do composto por Lili e J. Pinto Fernandes. Convém lembrar que os demais personagens têm apenas nome. Lili é apelido; J. Pinto Fernandes é o único que tem sobrenome. O apelido pode significar a falta de assunção da identidade, dos sentimentos, enquanto o sobrenome de J. parece indicar que Lili se casou com ele por interesse.
Pois bem. E qual é a relação da passagem relativa à deputada-dançarina com o poema de Drummond? Vamos lá. Eu não disse que inúmeros deputados-dançarinos a poupariam da degola? Pois é aí que entra o poema de Drummond. Se trocarmos o verbo ("amar" por "salvar" ou "poupar"), alternarmos a voz em que ele será flexionado (na ativa e na passiva) e fizermos alguns ajustes no tempo das flexões, teremos mais ou menos isto: "Professor Luizinho e Roberto Brant foram salvos por João Magno e Ângela que salvarão João Paulo e a própria Ângela que...". Xi! Misturei tudo! Meti os pés pelas mãos! O que não havia no poema de Drummond (a promiscuidade e a falta de reciprocidade) parece abundar na dança do Congresso. A intersecção está apenas em agir por interesse. O grande Drummond que me perdoe, mas isso é que é quadrilha!
Por fim, convém explicar a questão da voz verbal: com a passiva ("Prof. Luizinho e R. Brant foram salvos por..."), salientam-se os beneficiários do processo expresso pelo verbo, ou seja, Prof. Luizinho e R. Brant; com a ativa ("que salvarão João Paulo e a própria Ângela"), salienta-se o agente do processo expresso pelo verbo (o pronome relativo "que", que recupera "Magno" e "Ângela"). Como se vê, não se trata de uma quadrilha, digo, de um quadrado, mas de um círculo. Vicioso. E viva Drummond! É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
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