São Paulo, domingo, 06 de maio de 2001

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DIREITOS HUMANOS
Comissão responsabiliza país por impunidade em caso de marido que deixou mulher paraplégica, há 18 anos
OEA condena Brasil por violência doméstica

GABRIELA ATHIAS
ENVIADA ESPECIAL A FORTALEZA

A cearense Maria da Penha Maia Fernandes, 56, passou os últimos 18 anos lutando, sem sucesso, pela punição de seu ex-marido, a quem acusa de tentar matá-la com um tiro e de tê-la deixado paraplégica. Ele já foi condenado pelo crime, ocorrido em 1983, mas continua em liberdade.
No último dia 30, pela primeira vez, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sediada em Washington, condenou o Brasil por negligência e omissão em relação à violência doméstica. O caso que ilustrou a atitude do país em relação aos direitos das mulheres foi o de Maria da Penha.
A comissão faz parte da Organização dos Estados Americanos (OEA), composta pelos países das Américas e do Caribe. A entidade não tem poder para obrigar os países a acatarem suas decisões, mas usa canais diplomáticos para pressionar pelo fim de eventuais violações aos direitos humanos.
"A condenação do país é uma sanção de caráter moral, que constrange internacionalmente o Estado violador", afirma Silvia Pimentel, coordenadora, em São Paulo, do Comitê Latino-Americano pela Defesa do Direito das Mulheres (Cladem).
Além de recomendar que o país pague a Maria da Penha uma indenização ainda não definida, a comissão exige que o Brasil cumpra de forma "rápida e eficiente os procedimentos criminais" contra seu ex-marido, o economista Marco Antônio Heredia Viveiros.
O valor da indenização será definido entre o governo brasileiro e o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), representante legal de Maria da Penha perante a OEA.
A decisão de ressarci-la depende da vontade política do governo federal. Mas, como a negociação entre as duas partes é monitorada pela comissão, a pressão é forte.
O relatório final afirma que o Estado brasileiro é omisso em relação à violência doméstica: "Trata-se de uma tolerância de todo o sistema que (...) alimenta a violência contra a mulher (...), não havendo evidência socialmente percebida da vontade do Estado, como representante da sociedade, para punir esses atos".
"É muito comum ouvirmos homens acusados de maltratar a mulher dizerem: não tem juiz que me diga o que fazer dentro de casa", afirma Graziela Acqua Viva Pavez, do Núcleo de Violência e Justiça da Pontifícia Universidade de São Paulo.

Tratados
A comissão acusa o país de ter descumprido dois tratados internacionais dos quais é signatário: a Convenção Americana de Direitos Humanos e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra Mulher, conhecida como Convenção de Belém, aprovada em 1993.
Os dois acordos garantem às mulheres vítimas de violência doméstica amplo direito de defesa. Os acusados de cometer o delito devem ser alvo de investigação policial rigorosa. Comprovada a culpa, precisam ser punidos.
Passados 18 anos do crime, Heredia Viveiros não foi efetivamente punido, apesar de ter sido condenado pela Justiça do Ceará.
No dia 4 de maio de 1991, oito anos depois de tentar matar a mulher, ele foi sentenciado a 15 anos de prisão (dos quais só cumpriria 10, em razão de não ter antecedentes criminais).
Mas, alegando erros processuais, a defesa conseguiu anular a sentença. Ele foi condenado em um novo julgamento em 1996, mas recorreu e está em liberdade. Em dois anos, o crime de Heredia Viveiros prescreverá.
"O Brasil não garantiu um processo justo contra o agressor em um prazo razoável", afirma a sentença da comissão.
A denúncia de Maria da Penha chegou à comissão em 1988, pelas mãos do Cejil e do Cladem.
Durante os 13 anos em que o organismo da OEA analisou a denúncia, foram enviadas três solicitações oficiais de esclarecimentos ao governo brasileiro.
Depois de fazer o primeiro pedido de informação, no dia 19 de outubro de 1998, a comissão aguardou 250 dias por uma manifestação da diplomacia brasileira antes de decidir dar prosseguimento ao processo.
As repartições federais nunca prestaram esclarecimento sobre o caso Maria da Penha. Cumprindo as normas das convenções internacionais de direitos humanos, a comissão acatou como verdadeira a denúncia feita pelas duas organizações não-governamentais e condenou o Brasil.

Outro lado
O Ministério da Justiça recebeu o relatório da OEA na última sexta-feira e informou que ainda não há posição oficial sobre o caso. De acordo com o ministério, as recomendações serão examinadas e o governo Fernando Henrique vai analisar como poderá atendê-las.
A Folha não conseguiu localizar o economista Heredia Viveiros, que se mudou de Fortaleza, onde viveu com Maria da Penha.



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