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GILBERTO DIMENSTEIN
ACM e a droga do poder
Uma eventual cassação
do mandato seria apenas
um detalhe na galeria de tragédias pessoais colecionadas pelo
senador Antonio Carlos Magalhães. Na sua história estão algumas das mais agudas dores que
podem ocorrer na existência de
qualquer indivíduo -perto delas, a punição no Congresso é insignificante.
Uma de suas filhas se matou em
consequência das baixarias de
uma disputa eleitoral, atingida
na vida privada: visavam o pai,
mas a bala moral acabou acertando na filha.
Outro filho, seu herdeiro político, morreu prematuramente, graças, em parte, à falta de cuidados
com sua saúde.
Um genro foi encontrado com
uma bala na cabeça; ainda hoje
perduram as acusações, publicadas em livro, de que a ordem de
extermínio teria vindo do sogro,
então governador.
O próprio ACM encostou o dedo
na morte, atacado por sérias disfunções coronarianas; alguns médicos apostavam que ele não sobreviveria à cirurgia.
Extremo da fortaleza, todo-poderoso, temido, invejado, bajulado, o senador experimentou, com
a mesma intensidade, o extremo
da fragilidade humana.
Justamente essa vivência com a
fugacidade da existência, o desamparo do pai que chora a morte dos filhos, faz com que ele ofereça uma notável lição neste episódio da violação do painel eletrônico do Senado.
Natural e previsível que, em
meio a tantas situações-limite, se
reflita sobre o que é essencial na
vida. A imensa maioria das pessoas que conseguiram sobreviver
a doenças graves olha para trás e
despreza o desperdício de energia
que gastou com coisas menores
-somente o ato de estar vivo,
respirar, já é uma celebração. Geralmente, aparece uma sensação
de grandeza.
Como os leitores desta coluna
sabem, sou um crítico antigo de
Antonio Carlos Magalhães, por
considerá-lo um representante do
que existe de pior em costumes
políticos: intimidação, clientelismo e chantagem. Não mudei de
opinião, apesar de saber que ele
consegue cercar-se, algumas vezes, de técnicos de inegável competência.
Sinto-me obrigado, porém, a reconhecer que, depois da morte de
Luís Eduardo, ele, talvez tocado
pela sensação de grandeza de
quem sente a fragilidade extrema, fez gestos grandes.
Ajudou a elevar o valor do salário mínimo, criou a CPI do Judiciário e, mais importante, produziu o Fundo de Combate à Pobreza. Por causa desse fundo, a verba
do Programa Bolsa-Escola pulou
neste ano de R$ 160 milhões para
R$ 1,7 bilhão e deve atingir 6 milhões de famílias; são 10 milhões
de crianças em idade escolar.
O problema é que ACM foi vítima de si próprio, ferido em sua
vaidade, derrotado por Jader
Barbalho; a vingança passou a ser
o essencial, a principal força que o
movia.
Ao encontrar-se com os procuradores, falou sobre a lista da votação secreta que cassou o mandato de Luiz Estevão, origem de
sua armadilha.
Ter o acesso à lista era ter o
acesso à informação, a ser utilizada -quem sabe um dia- como
arma de chantagem e de intimidação; acuar os inimigos com
dossiês sempre foi seu estilo mesquinho de brigar. E, até aqui,
sempre tinha dado certo.
ACM involuntariamente se torna um grande mestre porque o
desenrolar de sua história ensina
como pouco aprendeu com suas
dores, por causa do vício ao poder.
Somos educados com a idéia de
que valemos não pelo que somos,
mas por aquilo que temos; sucesso
é ter carros, casas, prêmios, mandatos, altos cargos, dinheiro no
banco, roupas.
Esse comportamento não é novo, mas agora está quase consensual. Não existem mais utopias,
sonhos. O pragmatismo impera,
numa reverência ao dinheiro e ao
poder como objetivos essenciais: é
o que aparece em todas as pesquisas que ouvem os projetos de adolescentes.
Às crianças é ensinado -na família, nos meios de comunicação
e nas escolas- que o grande objetivo é acumular conquistas materiais e aí é medida a importância
de um indivíduo.
Nada contra, claro, as pessoas
batalharem por ter uma casa confortável, um bom carro etc.
O problema é que as escolas ensinam muita geometria e pouca
filosofia, muita gramática e pouca arte, muita razão e pouca emoção.
Educa-se para o futuro, não para o presente; educa-se para o trabalho, não para a vida. Não se
cultiva aquilo que os gregos já diziam na Antiguidade: o sucesso
está na realização do autoconhecimento. É a educação para ser
-e não somente para ter.
Não vai aqui nenhuma vocação
hippie retardatária. O caso de
ACM é apenas mais um entre
tantos a mostrar que o culto obsessivo pelo sucesso e pelo poder é
um vício que nos tira humanidade: por causa dele, o senador e
tantos outros perderam a chance
de ser e, ao mesmo tempo, também perderam o que poderiam
ter.
No lugar do criador do Fundo
de Combate à Pobreza e da CPI
do Judiciário, entra o articulador
ou, na melhor das hipóteses, o conivente com um crime, uma indelével mancha na história do Senado, em particular, e na da democracia, em geral.
PS -Por falar em educação para a vida e droga, outra cassação
virou assunto nacional. Durante
uma viagem escolar, quatro alunos de uma escola do Rio de Janeiro fumaram maconha e, por
isso, foram expulsos.
O estigma da cassação escolar
vai ser muito mais prejudicial à
vida daqueles adolescentes do
que a maconha. O papel verdadeiro da escola é ensinar a voar,
não cortar as asas. Já existem
meios mais civilizados e produtivos de combate às drogas.
E-mail - gdimen@uol.com.br
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