São Paulo, domingo, 06 de maio de 2001

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GILBERTO DIMENSTEIN
ACM e a droga do poder

Uma eventual cassação do mandato seria apenas um detalhe na galeria de tragédias pessoais colecionadas pelo senador Antonio Carlos Magalhães. Na sua história estão algumas das mais agudas dores que podem ocorrer na existência de qualquer indivíduo -perto delas, a punição no Congresso é insignificante.
Uma de suas filhas se matou em consequência das baixarias de uma disputa eleitoral, atingida na vida privada: visavam o pai, mas a bala moral acabou acertando na filha.
Outro filho, seu herdeiro político, morreu prematuramente, graças, em parte, à falta de cuidados com sua saúde.
Um genro foi encontrado com uma bala na cabeça; ainda hoje perduram as acusações, publicadas em livro, de que a ordem de extermínio teria vindo do sogro, então governador.
O próprio ACM encostou o dedo na morte, atacado por sérias disfunções coronarianas; alguns médicos apostavam que ele não sobreviveria à cirurgia.
Extremo da fortaleza, todo-poderoso, temido, invejado, bajulado, o senador experimentou, com a mesma intensidade, o extremo da fragilidade humana.
Justamente essa vivência com a fugacidade da existência, o desamparo do pai que chora a morte dos filhos, faz com que ele ofereça uma notável lição neste episódio da violação do painel eletrônico do Senado.
Natural e previsível que, em meio a tantas situações-limite, se reflita sobre o que é essencial na vida. A imensa maioria das pessoas que conseguiram sobreviver a doenças graves olha para trás e despreza o desperdício de energia que gastou com coisas menores -somente o ato de estar vivo, respirar, já é uma celebração. Geralmente, aparece uma sensação de grandeza.
Como os leitores desta coluna sabem, sou um crítico antigo de Antonio Carlos Magalhães, por considerá-lo um representante do que existe de pior em costumes políticos: intimidação, clientelismo e chantagem. Não mudei de opinião, apesar de saber que ele consegue cercar-se, algumas vezes, de técnicos de inegável competência.
Sinto-me obrigado, porém, a reconhecer que, depois da morte de Luís Eduardo, ele, talvez tocado pela sensação de grandeza de quem sente a fragilidade extrema, fez gestos grandes.
Ajudou a elevar o valor do salário mínimo, criou a CPI do Judiciário e, mais importante, produziu o Fundo de Combate à Pobreza. Por causa desse fundo, a verba do Programa Bolsa-Escola pulou neste ano de R$ 160 milhões para R$ 1,7 bilhão e deve atingir 6 milhões de famílias; são 10 milhões de crianças em idade escolar.
O problema é que ACM foi vítima de si próprio, ferido em sua vaidade, derrotado por Jader Barbalho; a vingança passou a ser o essencial, a principal força que o movia.
Ao encontrar-se com os procuradores, falou sobre a lista da votação secreta que cassou o mandato de Luiz Estevão, origem de sua armadilha.
Ter o acesso à lista era ter o acesso à informação, a ser utilizada -quem sabe um dia- como arma de chantagem e de intimidação; acuar os inimigos com dossiês sempre foi seu estilo mesquinho de brigar. E, até aqui, sempre tinha dado certo.
ACM involuntariamente se torna um grande mestre porque o desenrolar de sua história ensina como pouco aprendeu com suas dores, por causa do vício ao poder.
Somos educados com a idéia de que valemos não pelo que somos, mas por aquilo que temos; sucesso é ter carros, casas, prêmios, mandatos, altos cargos, dinheiro no banco, roupas.
Esse comportamento não é novo, mas agora está quase consensual. Não existem mais utopias, sonhos. O pragmatismo impera, numa reverência ao dinheiro e ao poder como objetivos essenciais: é o que aparece em todas as pesquisas que ouvem os projetos de adolescentes.
Às crianças é ensinado -na família, nos meios de comunicação e nas escolas- que o grande objetivo é acumular conquistas materiais e aí é medida a importância de um indivíduo.
Nada contra, claro, as pessoas batalharem por ter uma casa confortável, um bom carro etc.
O problema é que as escolas ensinam muita geometria e pouca filosofia, muita gramática e pouca arte, muita razão e pouca emoção.
Educa-se para o futuro, não para o presente; educa-se para o trabalho, não para a vida. Não se cultiva aquilo que os gregos já diziam na Antiguidade: o sucesso está na realização do autoconhecimento. É a educação para ser -e não somente para ter.
Não vai aqui nenhuma vocação hippie retardatária. O caso de ACM é apenas mais um entre tantos a mostrar que o culto obsessivo pelo sucesso e pelo poder é um vício que nos tira humanidade: por causa dele, o senador e tantos outros perderam a chance de ser e, ao mesmo tempo, também perderam o que poderiam ter.
No lugar do criador do Fundo de Combate à Pobreza e da CPI do Judiciário, entra o articulador ou, na melhor das hipóteses, o conivente com um crime, uma indelével mancha na história do Senado, em particular, e na da democracia, em geral.
PS -Por falar em educação para a vida e droga, outra cassação virou assunto nacional. Durante uma viagem escolar, quatro alunos de uma escola do Rio de Janeiro fumaram maconha e, por isso, foram expulsos.
O estigma da cassação escolar vai ser muito mais prejudicial à vida daqueles adolescentes do que a maconha. O papel verdadeiro da escola é ensinar a voar, não cortar as asas. Já existem meios mais civilizados e produtivos de combate às drogas.

E-mail - gdimen@uol.com.br



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