São Paulo, domingo, 06 de agosto de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

DANUZA LEÃO

Anjos do Sol


São levadas para perto de um garimpo, e há um leilão para ver quem serão os primeiros a ir para a cama com elas

VOCÊ venderia sua filha de 12 anos para que ela fosse viver num fim de mundo, como prostituta (e escrava)? Pois há gente que faz isso, e mais do que se pensa.
Todos nós lemos nos jornais e vemos matérias na televisão sobre prostituição infantil, cenas passadas geralmente em Copacabana ou em praias do Nordeste. Nos horrorizamos, mas logo passamos para outro assunto. Mas outro dia vi um filme -"Anjos do Sol"- que me pegou na veia. Saí do cinema como se tivesse levado um soco na barriga e, não acreditando no que tinha visto, quis saber se o diretor não havia acrescentado um pouco de ficção à realidade. Não, era tudo verdade; o roteiro se baseou em artigos publicados na imprensa, e das fontes consultadas destacou-se a série de reportagens de Gilberto Dimenstein publicadas na Folha, que depois virou o livro "Meninas da Noite". E soube, pelo próprio Gilberto, que a realidade era ainda pior.
"Anjos do Sol" é a história de uma menina de 12 anos, Maria, que vive num vilarejo perdido no interior da Bahia e é vendida por seu pai; aliás, é a segunda filha vendida. Maria faz o que seu pai manda: pega sua trouxa e sai de casa, com a mãe e as irmãs que olham ela indo embora, sem tentar impedir que ela vá; sabem que não adianta, é assim mesmo. Ela vai de canoa, até chegar a uma cidadezinha onde é colocada numa jaula em um caminhão, com mais seis meninas. Elas não se olham e não trocam palavra. São levadas para perto de um garimpo, e no dia em que chegam, há um leilão para ver quem serão os primeiros a ir para a cama com as recém-chegadas -carne nova, como são anunciadas.
No filme inteiro não há um olhar humano. São todos piores do que bichos, e é difícil acreditar que exista gente assim. Mas os créditos finais informam: estima-se que no Brasil existam mais de 100 mil menores prostitutas.
O presidente Lula, que disse uma vez ser o bingo pior do que a prostituição infantil (ah, Lula!), precisava ver esse filme, e não só ele. O problema existe, não podemos fazer nada a respeito, mas mesmo não podendo, temos que saber. Se todos soubermos, talvez um dia isso deixe de acontecer.
O filme não mostra uma só cena chocante, um só seio de fora, uma só transa repulsiva. Faz mais, pois não é preciso imagens para que a gente "veja" o que está acontecendo naqueles cubículos onde os homens entram um depois do outro, sem intervalo, para que o faturamento seja maior.
Durante o filme inteiro eu torci por um final feliz: quando ela tenta fugir, quando ela chega ao Rio. Afinal, alguma coisa de bom tinha que acontecer na vida daquela menina de 12 anos. Mas nada acontece, e nem assim deixei de torcer.
"Anjos do Sol" não é um filme baixo astral; é um filme denúncia, que poderia -e acho que no início era essa a idéia- ter sido um documentário; idéia que se mostrou inviável pois, entre outros problemas, as meninas, todas menores, não poderiam ter seus rostos filmados. Mas é tão verdadeiro como se fosse.
O filme não tem um final feliz, mas termina com um toque de esperança: é quando Maria toma nas mãos as rédeas de sua vida, e quando isso acontece, com qualquer pessoa, passa a haver a possibilidade de um futuro.
"Anjos do Sol" é o "Cidade de Deus" da prostituição infantil; aquela vida que a gente pensa que só existe no jornalismo denúncia, mas que é real. Um belíssimo filme.


danuza.leao@uol.com.br


Texto Anterior: Polícia de SP protegeu carrasco nazista
Próximo Texto: Há 50 anos: Desmatamento ameaça Pontal
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.