São Paulo, domingo, 06 de agosto de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Matador de Riga passou pelo Rio e por SP

Depois de obter visto na França, Herbert Cukurs viveu também na cidade de Santos, no litoral paulista; corpo foi achado em Montevidéu, com marteladas na cabeça, em 1965
DA REPORTAGEM LOCAL

Os judeus radicados no Rio de Janeiro não acreditaram no que viram em 1948: o letão que comandara massacres em Riga agora cuidava de pedalinhos na praia de Icaraí, em Niterói.
A polícia de São Paulo não foi a primeira a saber das acusações de que Herbert Cukurs havia sido um aliado nazista na Segunda Guerra Mundial. No Rio de Janeiro, Cukurs enfrentou uma plêiade de acusações que resultou na sua fuga da cidade em meados dos anos 1950, quando trocou o Rio de Janeiro por Santos (litoral de SP).
Cukurs havia obtido um visto para imigrar para o Brasil no consulado de Marselha, na França, em 1946. No Rio, onde chegou no domingo de Carnaval desse mesmo ano, inventou um novo negócio, segundo seu filho Gunars: os pedalinhos. Icaraí, Urca, Copacabana e lagoa Rodrigo de Freitas abrigaram pedalinhos e até um restaurante flutuante de Cukurs. Gunars diz que as denúncias dos judeus do Rio de Janeiro contra o seu pai, que tiveram seu ápice em 1950, possuíam alguma relação com o sucesso de seus negócios. "Aí apareceram nos jornais comunistas as reportagens dizendo que meu pai era um carrasco nazista", afirma o filho.
O dossiê de Herbert Cukurs mantido pelo Dops de São Paulo mostra uma cronologia completamente diferente. Os primeiros relatos de que Cukurs teria participado dos massacres de Riga datam de 1946. Em 23 de maio desse ano, em Paris, Anthony Landau e Gustav Joffe prestam uma declaração juramentada, na qual dizem: "O "Obersturmführer" [cargo de comando na hierarquia da SS, grupo de ataque nazista] Herbert Cukurs, de nacionalidade letã, está atualmente no Brasil, no Rio de Janeiro. [...] Sob seu comando, milhares de vítimas foram assassinadas nas províncias da Letônia; ele foi também um dos organizadores e executores na época da liqüidação do gueto de Riga".
Em depoimentos prestados na Alemanha em 1948, Cukurs é acusado de ter profanado o cemitério judaico de Riga, de ter incendiado a sinagoga da cidade com cerca de 300 judeus dentro e de ter assassinado crianças na floresta de Rumbala. O dossiê do Dops reúne seis depoimentos contra Cukurs de judeus que sobreviveram aos massacres naquela cidade.
A documentação mostra que a polícia não moveu uma palha para investigar a veracidade das acusações.

Herói e amigo da polícia
As amizades de Cukurs no Brasil talvez ajudem a entender por que a polícia não o investiga em nenhum momento. O ex-capitão freqüentava os círculos da Aeronáutica no Rio, cidade onde desembarcou com um emprego na FAV (Fábrica Brasileira de Aviões), que conseguira quando estava na França.
Militares do governo de Eurico Gaspar Dutra ficaram ao lado de Cukurs quando judeus escreveram pichações nas casas em que eles alugavam pedalinhos no Rio em 1950, segundo seu filho Gunars. "Um grupo de generais e brigadeiros foi até a minha casa e disse para o meu pai: "Você cometeu um único erro". Meu pai quis saber qual era o erro e um general disse: "Você deveria ter matado todos os judeus'".
Cukurs tinha obtido o emprego na FAV porque era um herói da aviação na Letônia e membro honorário do Aeroclube da França. Ele gostava de repetir que escolhera o Brasil para viver depois da 2ª Guerra por causa de Santos Dumont.
Entre 1924 e 1936, Cukurs projetou três aviões e fez vôos que foram considerados históricos para a Gâmbia, na África, e para Tóquio. Era chamado de o "Charles Lindbergh" letão, em referência ao piloto norte-americano que cruzara o Atlântico em 1927. Entre 1933 e 1934, Cukurs voou de Riga à Gâmbia e voltou no mesmo avião. Demorou nove meses para cumprir os 20 mil quilômetros, distância de ida e volta.
O delegado do Dops paulista encarregado de proteger Cukurs em 1960, Alcides Cintra Bueno, acabou por tornar-se amigo do ex-capitão.
Cintra Bueno voltaria ao noticiário depois do fim da ditadura militar (1964-1985), quando organizações de direitos humanos passaram a divulgar que o delegado era um dos responsáveis pelo desaparecimento dos corpos dos adversários do regime. Ele também foi acusado de forjar casos de suicídio em guerrilheiros que haviam sido torturados.
A proteção policial a Cukurs tinha também o objetivo de evitar que se repetisse no Brasil o que havia ocorrido na Argentina. Em 11 de maio de 1960, Adolf Eichmann (1906-1962), que chefiara o Departamento para Assuntos Judaicos da Gestapo, foi seqüestrado em Buenos Aires por agentes do serviço secreto de Israel que haviam invadido o território argentino. Em 1962, foi enforcado após um dos mais rumorosos julgamentos de criminosos de guerra. A polícia dizia ser uma questão de honra evitar que algo do gênero ocorresse no Brasil.
Por conta do barulho provocado pelo caso Cukurs, o presidente Juscelino Kubitschek indeferiu em setembro de 1960 o seu pedido de naturalização. O ministro da Justiça de JK, Armando Falcão, classificou a naturalização de Cukurs, da mulher e de uma filha de "inconveniente". Fez uma ressalva, porém: "sem embargo da proteção que lhes é devida".

Cabeça martelada
Cukurs não teve direito a um julgamento como Eichmann. Foi assassinado brutalmente em Montevidéu, com marteladas na cabeça e tiros, por um grupo que se autodenominava "Aqueles que Não Esquecem", segundo um comunicado enviado à imprensa com a data de 24 de fevereiro de 1965. Seu corpo estava dentro de um baú. O grupo seria formado por agentes do Mossad.
Gunars, um dos filhos de Cukurs, conta que o austríaco Anton Künzle começou a freqüentar sua casa um ano antes do assassinato. Seduziu seu pai com a conversa de que arrumaria financiamento para um empreendimento que ele queria fazer no Brasil, no qual os sócios poderiam usar aviões, barcos e iates de um clube.
Foi em busca desse financiamento que Cukurs viajou para o Uruguai. O delegado que o protegera, Alcides Cintra Bueno, foi contra a viagem, segundo o filho de Cukurs. Disse que ele era louco de sair do país.
Há dois anos, grupos nacionalistas e neonazistas da Letônia tentaram reabilitar Cukurs. Imprimiram um cartão em que ele aparecia como herói nacional pelos seus feitos na aviação. O caso gerou um incidente com Israel. Pressionada pelo governo israelense, a presidente da Letônia, Vaira Vike-Freiberga, condenou a atitude dos nacionalistas, em um reconhecimento implícito de que Cukurs era um criminoso de guerra.
Gunars, o filho que zela pela memória do pai, diz que esse tipo de atitude era esperado de Vaira, uma mulher que chegou ao poder na Letônia por um partido socialista. "Na Letônia, você vai preso se chamar judeu de judeu. Tem de chamar de senhor hebreu. O que você pode esperar de um país assim ?"
(MARIO CESAR CARVALHO e LEANDRO BEGUOCI)

Texto Anterior: Anvisa vai criar cadastro de embriões
Próximo Texto: Filho diz não haver processo nem provas contra Cukurs
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.