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MOACYR SCLIAR
As palavras e o silêncio
Olhando a tevê, ele, como tantos outros, chorou. Ocorreu-lhe escrever uma história que retratasse a agonia humana
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Os últimos diálogos:
18:48:34 Co-piloto: "Desacelera, desacelera!"
18:48:40 Piloto: "Não dá, não dá... Ai,
meu Deus!" Cotidiano, 2 de agosto de 2007
DESDE CRIANÇA tinha um sonho: queria ser escritor, autor de livros como aqueles
que lia (lia, não: devorava) na escola:
as obras de José de Alencar, de Machado de Assis, de Graciliano Ramos. Muito cedo começou a rabiscar
historinhas que mostrava com orgulho para os professores e para os
pais. Todos o encorajavam, diziam
que deveria prosseguir, que tinha
muito talento. Mas disso ele próprio
duvidava. A verdade é que se sentia
muito distante dos grandes mestres.
Não tinha fôlego, parecia-lhe, para
escrever uma obra como as de Shakespeare, autor que admirava, embora nem sempre o entendesse.
Uma constatação que o deixava deprimido. E mais deprimido ficou
quando, a conselho dos pais e dos
amigos, começou a estudar letras.
Quanto mais autores famosos conhecia, mais se envergonhava de seu
próprio trabalho, coisa de simplório
amador. Os seus diálogos, por exemplo, eram fracos, banais, nada que
chegasse aos pés dos diálogos escritos por Shakespeare, diálogos que
traduziam todos os dramas que as
pessoas podem viver.
Um dia, e de repente, ocorreu-lhe
uma resposta. Um grande tema, era
isso o que lhe faltava. Um tema que
pudesse ser expresso através de diálogos fortes, transcendentes. Mas
que tema poderia ser esse? Na sua
própria vida nada acontecia que o
motivasse. Era uma vida tranqüila,
sem grandes problemas.
Os pais, ele, advogado, ela, médica,
não eram ricos, mas podiam sustentá-lo confortavelmente. Moravam
numa boa casa, onde ele tinha seu
quarto, sua tevê, seu computador.
Nunca passara fome, nem ele nem a
irmã mais velha, que aliás era a companheira, a confidente com quem
podia contar sempre. Nunca tivera
doenças graves, era um jovem atlético (jogava basquete), simpático. Namoradas estavam ao seu alcance à
hora que quisesse.
Grandes escritores muitas vezes
são pessoas atormentadas, angustiadas. Não era seu caso. E por essa
razão, era o que achava, não tinha
sobre o que escrever. Faltava-lhe
uma tragédia.
Então ocorreu o acidente aéreo.
Medonha catástrofe, dezenas de vítimas. Olhando a tevê, ele, como tantos outros, chorou de emoção. Ocorreu-lhe escrever uma história a respeito. Uma história que retratasse a
agonia humana numa tragédia como aquela e que a expressasse por
meio de diálogos: entre os passageiros, entre os pilotos.
Sem demora, sentou-se ao computador. Mas aí viu, sobre a mesa, o
jornal daquele dia, com a transcrição dos últimos diálogos gravados
na caixa preta. Ele os leu, ou melhor,
releu. Eram palavras simples aquelas, palavras que poderiam fazer
parte do cotidiano de qualquer pessoa, mesmo que essa pessoa não escrevesse: ""Desacelera, desacelera!",
"Não dá, não dá... Ai, meu Deus!"
Desligou o computador. Nada
mais havia a ser dito ou escrito. Nesse momento ocorreram-lhe as palavras daquele distante autor inglês,
Shakespeare: o resto é silêncio.
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha
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