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Foram 10 dias de porrada, afirma jovem sobre a prisão
Rapazes que ficaram 2 anos presos narram as torturas sofridas por policiais
"O que você imaginar de ruim na Terra, eles fizeram", diz o office-boy William César de Brito Silva, sobre os maus-tratos da polícia
MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL
Asfixiamento com saco plástico, choque elétrico, espancamento com a mão, cadeiradas.
Esqueça Guantánamo, a prisão americana acusada de violar direitos fundamentais. Foi
em Guarulhos, a cerca de 20 km
do palácio do governo de São
Paulo, que três jovens acusados
de homicídio e violência sexual
dizem ter passado por essa rotina de maus-tratos, no primeiro
relato mais detalhado da tortura, feito à Folha. O trio ficou
preso por dois anos, sob acusação de agressão sexual e homicídio. Foram soltos após outro
homem confessar o crime.
"Renato foi o que mais apanhou. Foram dez dias de porrada", conta o pizzaiolo Wagner
Conceição da Silva, 25, referindo-se ao também pizzaiolo Renato Correia de Brito, 24. Eles
dizem ter sofrido tortura numa
base da Polícia Militar e no 1º
Distrito Policial de Guarulhos.
"Na delegacia, um investigador
falava: hoje estou com vontade
de bater em você", diz Wagner.
O pior dia, para ele, foi quando a Justiça prorrogou por 30
dias a prisão. Um policial civil
foi à cela e deu o seguinte recado, segundo ele: "Vocês têm
mais 30 dias nas nossas mãos".
O office-boy William César
de Brito Silva, 28, é o mais enigmático dos três nas conversas
sobre os maus-tratos da polícia: "O que você imaginar de
ruim na Terra, eles fizeram".
Renato, Wagner e William
não se parecem em nada com o
retrato que a polícia fez dos "jovens criminosos" da periferia.
Não falam gírias, do tipo "certo,
mano?" nem usam bermudão.
Vestem-se com camisa social,
calça jeans e sapato de couro.
Moram num bairro com o
nome orwelliano de Continental 4, na periferia de Guarulhos,
numa área na qual morros e
matas foram cortados para dar
lugar a casas sem reboco.
No dia da prisão, 19 de agosto
de 2006, dois deles estavam
empregados, Wagner tinha
uma entrevista marcada numa
pizzaria, e nenhum dos três tinha passagem pela polícia.
Se triscar um dedo...
Quando viu os policiais jogarem seu filho de cueca no chão,
aos gritos de "a casa caiu!", a dona-de-casa Iraildes Alves Conceição, 48, mãe de Wagner, diz
que teve uma premonição: "Me
ajoelhei e gritei com os policiais: "Se triscar um dedo no
meu filho, vocês vão ver a baiana louca'". A baiana de Ribeira
do Pombal teve uma idéia que
constrangeu em parte os policiais: mandou a filha e o genro
seguirem os policiais de moto.
A filha, segundo a mãe, teve
uma crise quando descobriu
que seu esforço dera em quase
nada. "Por causa da prisão, minha filha perdeu 14 quilos em
uma semana. Pensei que ia
morrer".
Renato, acusado de ter matado e violentado Vanessa Batista
de Freitas, 22, vive um drama
extra. Ele teve uma filha com
Vanessa, que tinha 1 ano e um
mês quando foi preso.
Desde que foi liberado na última quarta-feira, Renato já
conseguiu até um emprego na
pizzaria Rouxinol, onde trabalhava quando foi preso, mas
não reviu Bianca, 3.
A Justiça determinou que
Renato fosse solto após um suposto maníaco confessar o crime, mas os avós de Bianca, João
e Angelina Freitas Borges, parecem ter dúvidas sobre a inocência dele. Durante dois anos,
eles acreditaram na polícia e na
hipótese de que Renato havia
assassinado sua filha. "Esperamos dois anos e teve essa mudança. De repente, tem uma
nova mudança. Só o tempo vai
dizer se a Justiça está certa",
afirma João.
Renato diz entender a posição dos avós de sua filha: "Não
vejo a hora de ver como a Bianca está. Não sei como é a cara
dela, mas entendo a dúvida do
João e da Angelina: eles perderam uma filha. Deus vai ajudar
a tirar essa dúvida deles".
O pizzaiolo, que vivia com
outra mulher antes de ser preso, afirma ter vontade de pedir
a guarda da filha, mas acha que
a prioridade é o bem-estar da
menina. "Sou o pai, mas os avós
ficaram dois anos com a Bianca.
É uma situação difícil."
Ninguém anda sozinho
Desde que saíram do CDP 1
(Centro de Detenção Provisória) de Guarulhos, Renato,
Wagner e William adotaram
uma estratégia para evitar
eventuais retaliações da polícia: ninguém sai na rua sozinho, nem para ir até a esquina
comprar os jornais que relatam
a história deles.
O office-boy William, que estudou até a 5ª série do ensino
fundamental, diz que a prisão
acabou com dois dos seus projetos de vida: construir uma casa e ter um carro para fazer propaganda sonora pelas ruas de
Guarulhos. "Como fui preso,
não consegui pagar o carro.
Sem o carro, não consegui fazer
a minha casa. Tudo virou pó".
Wagner, que fez até o 2º ano
do ensino médio, diz que foi
preso no mês que marcaria seu
casamento. Já tinha até uma
data acertada: 30 de julho de
2007. Agora planeja casar no
ano que vem.
Renato, que conclui a 8ª série, diz que não ainda não conseguiu pensar muito no futuro.
Conta que vive obcecado com
uma idéia: as mortes que a polícia teria evitado se tivesse investigado corretamente o caso
e prendido Leandro Basílio Rodrigues, 19, apelidado "o maníaco de Guarulhos". "Esse maníaco já confessou 18 mortes
depois de 2006. Quantas vidas
teriam sido salvas se os policiais tivessem feito o trabalho
deles direito?".
Colaborou JULIANA COISSI, em São Paulo
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