São Paulo, sábado, 06 de setembro de 2008

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Foram 10 dias de porrada, afirma jovem sobre a prisão

Rapazes que ficaram 2 anos presos narram as torturas sofridas por policiais

"O que você imaginar de ruim na Terra, eles fizeram", diz o office-boy William César de Brito Silva, sobre os maus-tratos da polícia

MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Asfixiamento com saco plástico, choque elétrico, espancamento com a mão, cadeiradas. Esqueça Guantánamo, a prisão americana acusada de violar direitos fundamentais. Foi em Guarulhos, a cerca de 20 km do palácio do governo de São Paulo, que três jovens acusados de homicídio e violência sexual dizem ter passado por essa rotina de maus-tratos, no primeiro relato mais detalhado da tortura, feito à Folha. O trio ficou preso por dois anos, sob acusação de agressão sexual e homicídio. Foram soltos após outro homem confessar o crime.
"Renato foi o que mais apanhou. Foram dez dias de porrada", conta o pizzaiolo Wagner Conceição da Silva, 25, referindo-se ao também pizzaiolo Renato Correia de Brito, 24. Eles dizem ter sofrido tortura numa base da Polícia Militar e no 1º Distrito Policial de Guarulhos.
"Na delegacia, um investigador falava: hoje estou com vontade de bater em você", diz Wagner.
O pior dia, para ele, foi quando a Justiça prorrogou por 30 dias a prisão. Um policial civil foi à cela e deu o seguinte recado, segundo ele: "Vocês têm mais 30 dias nas nossas mãos".
O office-boy William César de Brito Silva, 28, é o mais enigmático dos três nas conversas sobre os maus-tratos da polícia: "O que você imaginar de ruim na Terra, eles fizeram".
Renato, Wagner e William não se parecem em nada com o retrato que a polícia fez dos "jovens criminosos" da periferia. Não falam gírias, do tipo "certo, mano?" nem usam bermudão.
Vestem-se com camisa social, calça jeans e sapato de couro.
Moram num bairro com o nome orwelliano de Continental 4, na periferia de Guarulhos, numa área na qual morros e matas foram cortados para dar lugar a casas sem reboco.
No dia da prisão, 19 de agosto de 2006, dois deles estavam empregados, Wagner tinha uma entrevista marcada numa pizzaria, e nenhum dos três tinha passagem pela polícia.

Se triscar um dedo... Quando viu os policiais jogarem seu filho de cueca no chão, aos gritos de "a casa caiu!", a dona-de-casa Iraildes Alves Conceição, 48, mãe de Wagner, diz que teve uma premonição: "Me ajoelhei e gritei com os policiais: "Se triscar um dedo no meu filho, vocês vão ver a baiana louca'". A baiana de Ribeira do Pombal teve uma idéia que constrangeu em parte os policiais: mandou a filha e o genro seguirem os policiais de moto.
A filha, segundo a mãe, teve uma crise quando descobriu que seu esforço dera em quase nada. "Por causa da prisão, minha filha perdeu 14 quilos em uma semana. Pensei que ia morrer".
Renato, acusado de ter matado e violentado Vanessa Batista de Freitas, 22, vive um drama extra. Ele teve uma filha com Vanessa, que tinha 1 ano e um mês quando foi preso.
Desde que foi liberado na última quarta-feira, Renato já conseguiu até um emprego na pizzaria Rouxinol, onde trabalhava quando foi preso, mas não reviu Bianca, 3.
A Justiça determinou que Renato fosse solto após um suposto maníaco confessar o crime, mas os avós de Bianca, João e Angelina Freitas Borges, parecem ter dúvidas sobre a inocência dele. Durante dois anos, eles acreditaram na polícia e na hipótese de que Renato havia assassinado sua filha. "Esperamos dois anos e teve essa mudança. De repente, tem uma nova mudança. Só o tempo vai dizer se a Justiça está certa", afirma João.
Renato diz entender a posição dos avós de sua filha: "Não vejo a hora de ver como a Bianca está. Não sei como é a cara dela, mas entendo a dúvida do João e da Angelina: eles perderam uma filha. Deus vai ajudar a tirar essa dúvida deles".
O pizzaiolo, que vivia com outra mulher antes de ser preso, afirma ter vontade de pedir a guarda da filha, mas acha que a prioridade é o bem-estar da menina. "Sou o pai, mas os avós ficaram dois anos com a Bianca.
É uma situação difícil."

Ninguém anda sozinho
Desde que saíram do CDP 1 (Centro de Detenção Provisória) de Guarulhos, Renato, Wagner e William adotaram uma estratégia para evitar eventuais retaliações da polícia: ninguém sai na rua sozinho, nem para ir até a esquina comprar os jornais que relatam a história deles.
O office-boy William, que estudou até a 5ª série do ensino fundamental, diz que a prisão acabou com dois dos seus projetos de vida: construir uma casa e ter um carro para fazer propaganda sonora pelas ruas de Guarulhos. "Como fui preso, não consegui pagar o carro.
Sem o carro, não consegui fazer a minha casa. Tudo virou pó".
Wagner, que fez até o 2º ano do ensino médio, diz que foi preso no mês que marcaria seu casamento. Já tinha até uma data acertada: 30 de julho de 2007. Agora planeja casar no ano que vem.
Renato, que conclui a 8ª série, diz que não ainda não conseguiu pensar muito no futuro.
Conta que vive obcecado com uma idéia: as mortes que a polícia teria evitado se tivesse investigado corretamente o caso e prendido Leandro Basílio Rodrigues, 19, apelidado "o maníaco de Guarulhos". "Esse maníaco já confessou 18 mortes depois de 2006. Quantas vidas teriam sido salvas se os policiais tivessem feito o trabalho deles direito?".


Colaborou JULIANA COISSI, em São Paulo


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