São Paulo, domingo, 06 de novembro de 2005

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CIDADE REVISITADA

Estudiosos que participaram do encontro "Fronteiras Culturais: O Espaço Urbano", na USP, desvendam metrópole a pé

Intelectuais caminham nos paradoxos de SP

DA REPORTAGEM LOCAL

Um mapa, um guarda-chuva e uma "aula" do professor de geografia da USP Francisco Scarlatto são suficientes para se entender que o crescimento de São Paulo é parecido com uma praga, um tumor, e que o vírus transmissor desse crescimento é o automóvel. A "aula" é dada com o mapa no chão do vão do Masp. Com o guarda-chuva na mão, Scarlatto indica os lugares dos quais fala.
O grupo de "alunos" é formado por outros intelectuais da USP, da UFRGS, professores e doutorandos da Universidade Livre de Berlim e estudantes da USP. Eles se reuniram no final de semana passado para observar, na prática, o que foi discutido, na teoria, no encontro "Fronteiras Culturais: O Espaço Urbano", realizado na Cidade Universitária.
Conforme observa um dos "alunos" de Scarlatto, o professor de literatura brasileira na USP Flávio Aguiar, do antigo Pátio do Colégio, esse tumor cresceu e dominou, desordenadamente, milhares de quilômetros quadrados, formando a segunda maior metrópole da América Latina.
Essa lógica do crescimento das vias de transporte criou, afirma Scarlatto, um funil, indicando no mapa que todos os caminhos apontam para a capital paulista.
Essa malha viária em forma de funil "é o que mais penaliza o trabalhador da cidade, que às vezes leva de três a quatro horas da jornada dele no transporte", diz Scarlatto.
Segundo ele, os veículos que têm como ponto final a cidade de São Paulo podem parar na periferia, descarregar e ir embora. O problema são os milhares veículos que precisam passar por dentro da cidade para ir em direção à região Sul. Isto causa "um trânsito de caminhões e ônibus que passam pela região metropolitana em direção à região Sul". Para Scarlatto, a solução do problema seria um anel viário. Segundo ele, o Rodoanel que está em construção pelo governo Geraldo Alckmin (PSDB), até agora, "pega só uma parte" do problema. O geógrafo diz que a obra, se concluída, "poderá impedir que os caminhões de carga em trânsito tivessem necessariamente de passar pelo centro da metrópole".
De acordo com ele, se houvesse o anel viário, a carreta que atravessou São Paulo na última semana e quebrou na rua Turiassu, em Perdizes, piorando o tráfego na cidade, não teria necessariamente de passar por dentro da malha urbana e causar problemas em um trânsito que já é caótico.

Automóvel
Para Scarlatto, o sistema viário e a opção que São Paulo fez pelo automóvel levaram à destruição dos bairros centrais e implodiram a cidade, tornando-a caótica. Nessa hora, segundo ele, "quem tem dinheiro foge do trânsito, da agitação, da poluição e da pobreza".
O geógrafo ironiza quando diz que "gente pobre incomoda". "Rico sente coceira de pobreza, então ele sai correndo [muda de bairro]." Os ricos saíram dos Campos Elíseos, na região central, foram para os Jardins, depois Morumbi e agora escolheram os condomínios de alto padrão, como Alphaville e Tamboré.
Antes de o grupo sair do Masp e começar o passeio, Aguiar diz que dali do vão do Masp se percebe que o museu foi "concebido como uma moldura de um quadro". "Daqui se pode ver, como em um quadro, a cidade, se olharmos em direção ao centro. Hoje a verticalização esconde a cidade, mas assim mesmo ainda se pode ver daqui o contraste, porque daqui se vê esse conjunto de prédios misturados, desordenados. Se olharmos em direção ao parque, se tem uma idéia da vegetação, da natureza, ou seja, daqui debaixo do Masp nós ainda temos essa idéia do contraste: de um lado a cidade, o concreto; do outro, o parque, com sua vegetação. Ambos enquadrados pelo museu."

Cidade dos paradoxos
Para Scarlatto, São Paulo é a cidade dos paradoxos, "porque você sai de Paraisópolis, atravessa a avenida e encontra apartamentos de 400, 500 e até 600 metros quadrados". "Aqui a realidade nunca é monótona, você encontra uma pluralidade de paisagens, a prostituição perto de grandes santuários. É uma cidade original."
Na esquina da rua dos Belgas com a rua dos Ingleses, o professor Scarlatto indica um terreno onde antigamente ficava um dos maiores palacetes da cidade. Era a casa de Geremia Lunardelli, o rei do café. Hoje, só restou uma churrasqueira no fundo do terreno. O resto é ocupado por mato e lixo.
O telenovelista e escritor Benedito Ruy Barbosa se inspirou na história de Lunardelli para criar o personagem Geremias Berdinazzi, interpretado pelo ator Raul Cortez, na novela "O Rei do Gado" (1996), da Rede Globo.
Para a professora Aymara Celia, do Instituto Cyro Martins, especialista em antropologia social, os "restos mortais" daquela que foi a maior casa da cidade são a prova que "determinados tipos de vida se transportam para outro local, o que faz da cidade de São Paulo algo vivo". Segundo ela, "o fenômeno da revitalização dos centros está intimamente ligado a essas mudanças, pois o que ocorre nas áreas que antes eram habitadas pelas classe mais ricas, os centros, é a degradação e em seguida uma busca pela revitalização".

Lixo
Em frente à igreja da Achiropita, no Bexiga, o grupo começa a discutir a questão do lixo na cidade. A professora Aymara pergunta: "A cidade é suja saindo do metrô, mas o metrô é limpíssimo. Por que isso?".
Para ela, o fato de afirmarem que "no metrô há uma tolerância zero à sujeira, não justifica que o pessoal não se importe de jogar lixo na rua e não jogue dentro do metrô, que realmente é muito limpo se comparado à cidade".
Segundo Aymara, contraditoriamente, "as mesmas pessoas que sujam as ruas usam o metrô".
Segundo a professora Karla Müller, da UFRGS, "algumas práticas culturais são conscientes; outras não. São uma reprodução do contexto, do cotidiano em que as pessoas vivem. Se a pessoa tem na casa dela uma estrutura mínima de cidadão, porque que ela não vai respeitar essa mesma estrutura em outros lugares? Mas, quando ela não tem essa estrutura, fica realmente muito difícil cobrar determinados comportamentos".

Garagem
Do Bexiga o grupo ruma para o Pátio do Colégio, de onde se avista também uma garagem vertical. O prédio, uma espécie de caixa de concreto, chama a atenção dos alemães, que ficam embasbacados ao saber que aquilo é uma garagem. Surge uma pergunta do alemão Ute Hermanns: "Por que não foi feito no subterrâneo?".
Segundo Scarlatto, "a partir dos anos 50 a indústria automobilística começou a jogar muito automóvel nas mãos da classe média. O centro financeiro estava aqui. A classe média queria vir de automóvel para o centro, mas no centro não tinha lugar para estacionar. Começaram a surgir garagens verticais, que foram construídas porque era mais fácil e mais barato construir para cima".
Segundo o professor Flávio Aguiar, "a garagem parece o cofre do Tio Patinhas e mostra uma despreocupação com o ambiente e com o fato de que a paisagem é um direito do cidadão".
Para Scarlatto, o crescimento voltado para o automóvel só vai mudando o problema de local. "O automóvel chega, esgota e leva o centro econômico para outro lugar. A degradação do centro foi causada também pela dificuldade de os automóveis transitarem na região. O excesso de carros sempre degrada", diz ele.
Para a professora da Universidade Livre de Berlim Ligia Chiappini, essas incessantes mudanças causadas pela força do automóvel em São Paulo dão ao cidadão um "sentido de orfandade, pois perder um pedacinho da cidade é como perder um pedacinho de si mesmo". (RENATO ROSCHEL)


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