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CIDADE REVISITADA
Estudiosos que participaram do encontro "Fronteiras Culturais: O Espaço Urbano", na USP, desvendam metrópole a pé
Intelectuais caminham nos paradoxos de SP
DA REPORTAGEM LOCAL
Um mapa, um guarda-chuva e
uma "aula" do professor de geografia da USP Francisco Scarlatto
são suficientes para se entender
que o crescimento de São Paulo é
parecido com uma praga, um tumor, e que o vírus transmissor
desse crescimento é o automóvel.
A "aula" é dada com o mapa no
chão do vão do Masp. Com o
guarda-chuva na mão, Scarlatto
indica os lugares dos quais fala.
O grupo de "alunos" é formado
por outros intelectuais da USP, da
UFRGS, professores e doutorandos da Universidade Livre de Berlim e estudantes da USP. Eles se
reuniram no final de semana passado para observar, na prática, o
que foi discutido, na teoria, no encontro "Fronteiras Culturais: O
Espaço Urbano", realizado na Cidade Universitária.
Conforme observa um dos "alunos" de Scarlatto, o professor de
literatura brasileira na USP Flávio
Aguiar, do antigo Pátio do Colégio, esse tumor cresceu e dominou, desordenadamente, milhares de quilômetros quadrados,
formando a segunda maior metrópole da América Latina.
Essa lógica do crescimento das
vias de transporte criou, afirma
Scarlatto, um funil, indicando no
mapa que todos os caminhos
apontam para a capital paulista.
Essa malha viária em forma de
funil "é o que mais penaliza o trabalhador da cidade, que às vezes
leva de três a quatro horas da jornada dele no transporte", diz
Scarlatto.
Segundo ele, os veículos que
têm como ponto final a cidade de
São Paulo podem parar na periferia, descarregar e ir embora. O
problema são os milhares veículos que precisam passar por dentro da cidade para ir em direção à
região Sul. Isto causa "um trânsito
de caminhões e ônibus que passam pela região metropolitana
em direção à região Sul". Para
Scarlatto, a solução do problema
seria um anel viário. Segundo ele,
o Rodoanel que está em construção pelo governo Geraldo Alckmin (PSDB), até agora, "pega só
uma parte" do problema. O geógrafo diz que a obra, se concluída,
"poderá impedir que os caminhões de carga em trânsito tivessem necessariamente de passar
pelo centro da metrópole".
De acordo com ele, se houvesse
o anel viário, a carreta que atravessou São Paulo na última semana e quebrou na rua Turiassu, em
Perdizes, piorando o tráfego na
cidade, não teria necessariamente
de passar por dentro da malha urbana e causar problemas em um
trânsito que já é caótico.
Automóvel
Para Scarlatto, o sistema viário e
a opção que São Paulo fez pelo automóvel levaram à destruição dos
bairros centrais e implodiram a
cidade, tornando-a caótica. Nessa
hora, segundo ele, "quem tem dinheiro foge do trânsito, da agitação, da poluição e da pobreza".
O geógrafo ironiza quando diz
que "gente pobre incomoda".
"Rico sente coceira de pobreza,
então ele sai correndo [muda de
bairro]." Os ricos saíram dos
Campos Elíseos, na região central,
foram para os Jardins, depois Morumbi e agora escolheram os condomínios de alto padrão, como
Alphaville e Tamboré.
Antes de o grupo sair do Masp e
começar o passeio, Aguiar diz que
dali do vão do Masp se percebe
que o museu foi "concebido como uma moldura de um quadro".
"Daqui se pode ver, como em um
quadro, a cidade, se olharmos em
direção ao centro. Hoje a verticalização esconde a cidade, mas assim mesmo ainda se pode ver daqui o contraste, porque daqui se
vê esse conjunto de prédios misturados, desordenados. Se olharmos em direção ao parque, se tem
uma idéia da vegetação, da natureza, ou seja, daqui debaixo do
Masp nós ainda temos essa idéia
do contraste: de um lado a cidade,
o concreto; do outro, o parque,
com sua vegetação. Ambos enquadrados pelo museu."
Cidade dos paradoxos
Para Scarlatto, São Paulo é a cidade dos paradoxos, "porque você sai de Paraisópolis, atravessa a
avenida e encontra apartamentos
de 400, 500 e até 600 metros quadrados". "Aqui a realidade nunca
é monótona, você encontra uma
pluralidade de paisagens, a prostituição perto de grandes santuários. É uma cidade original."
Na esquina da rua dos Belgas
com a rua dos Ingleses, o professor Scarlatto indica um terreno
onde antigamente ficava um dos
maiores palacetes da cidade. Era a
casa de Geremia Lunardelli, o rei
do café. Hoje, só restou uma churrasqueira no fundo do terreno. O
resto é ocupado por mato e lixo.
O telenovelista e escritor Benedito Ruy Barbosa se inspirou na
história de Lunardelli para criar o
personagem Geremias Berdinazzi, interpretado pelo ator Raul
Cortez, na novela "O Rei do Gado" (1996), da Rede Globo.
Para a professora Aymara Celia,
do Instituto Cyro Martins, especialista em antropologia social, os
"restos mortais" daquela que foi a
maior casa da cidade são a prova
que "determinados tipos de vida
se transportam para outro local, o
que faz da cidade de São Paulo algo vivo". Segundo ela, "o fenômeno da revitalização dos centros está intimamente ligado a essas mudanças, pois o que ocorre nas
áreas que antes eram habitadas
pelas classe mais ricas, os centros,
é a degradação e em seguida uma
busca pela revitalização".
Lixo
Em frente à igreja da Achiropita,
no Bexiga, o grupo começa a discutir a questão do lixo na cidade.
A professora Aymara pergunta:
"A cidade é suja saindo do metrô,
mas o metrô é limpíssimo. Por
que isso?".
Para ela, o fato de afirmarem
que "no metrô há uma tolerância
zero à sujeira, não justifica que o
pessoal não se importe de jogar lixo na rua e não jogue dentro do
metrô, que realmente é muito
limpo se comparado à cidade".
Segundo Aymara, contraditoriamente, "as mesmas pessoas
que sujam as ruas usam o metrô".
Segundo a professora Karla
Müller, da UFRGS, "algumas práticas culturais são conscientes;
outras não. São uma reprodução
do contexto, do cotidiano em que
as pessoas vivem. Se a pessoa tem
na casa dela uma estrutura mínima de cidadão, porque que ela
não vai respeitar essa mesma estrutura em outros lugares? Mas,
quando ela não tem essa estrutura, fica realmente muito difícil cobrar determinados comportamentos".
Garagem
Do Bexiga o grupo ruma para o
Pátio do Colégio, de onde se avista
também uma garagem vertical. O
prédio, uma espécie de caixa de
concreto, chama a atenção dos
alemães, que ficam embasbacados ao saber que aquilo é uma garagem. Surge uma pergunta do
alemão Ute Hermanns: "Por que
não foi feito no subterrâneo?".
Segundo Scarlatto, "a partir dos
anos 50 a indústria automobilística começou a jogar muito automóvel nas mãos da classe média.
O centro financeiro estava aqui. A
classe média queria vir de automóvel para o centro, mas no centro não tinha lugar para estacionar. Começaram a surgir garagens verticais, que foram construídas porque era mais fácil e
mais barato construir para cima".
Segundo o professor Flávio
Aguiar, "a garagem parece o cofre
do Tio Patinhas e mostra uma
despreocupação com o ambiente
e com o fato de que a paisagem é
um direito do cidadão".
Para Scarlatto, o crescimento
voltado para o automóvel só vai
mudando o problema de local. "O
automóvel chega, esgota e leva o
centro econômico para outro lugar. A degradação do centro foi
causada também pela dificuldade
de os automóveis transitarem na
região. O excesso de carros sempre degrada", diz ele.
Para a professora da Universidade Livre de Berlim Ligia Chiappini, essas incessantes mudanças
causadas pela força do automóvel
em São Paulo dão ao cidadão um
"sentido de orfandade, pois perder um pedacinho da cidade é como perder um pedacinho de si
mesmo".
(RENATO ROSCHEL)
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