São Paulo, segunda-feira, 07 de fevereiro de 2005

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MOACYR SCLIAR

Atrás da máscara

Carnaval: máscara homenageia Dom Quixote no Rio. Personagem de Miguel de Cervantes completa 400 anos e também é protagonista do enredo da Unidos da Tijuca. Cotidiano, 24.jan.2005

Até comprar a máscara ele sabia apenas vagamente quem era aquele tal de Dom Quixote. Mas, ao colocar a dita máscara, ficou de tal modo fascinado que decidiu ler mais sobre o personagem de Cervantes. O livro era muito grande, mas ele conseguiu, na internet, um resumo menos extenso. De imediato constatou que a história do Cavaleiro da Triste Figura era absolutamente incrível. Aquela coisa de enlouquecer lendo livros de cavalaria, de transformar uma mulher meio grossa na dama Dulcinéia, de cavalgar um matungo chamado Rocinante, de ter como escudeiro o Sancho Pança, de investir contra moinhos de vento achando que eram gigantes -aquilo tudo mexeu com sua cabeça, exatamente como os romances tinham mexido com a cabeça de Quixote.
Porque no fundo, disso agora se dava conta, era um quixotesco. Na vida real não passava de um empregado de escritório; mas, em seus sonhos, transformava-se num herói popular, capaz de liderar grandes movimentos de massas.
Só de brincadeira, resolveu bancar o Quixote. A primeira coisa que fez foi rebatizar a namorada como Dulcinéia. No começo ela não entendeu, mas quando ele lhe contou a história de Cervantes, aderiu com entusiasmo. Com seu amigo Nando já foi mais difícil. Nando era sensato, como Sancho, e tão gordinho quanto este, mas, impressionado com as estatísticas sobre obesidade, decidira fazer um regime. O novo Quixote tratou de dissuadi-lo: preciso de você gordo, caso contrário não poderemos continuar amigos. Nando concordou em adiar o regime por uns tempos.
Difícil foi arranjar uma armadura, e igualmente difícil conseguir um cavalo magro igual ao Rocinante; custou-lhe bom dinheiro, um dinheiro que teve de pedir emprestado, mas no fim tudo deu certo e um belo dia lá estava ele, no meio de uma movimentada avenida, vestido de Quixote e cavalgando o Rocinante. Decidira entrar no escritório assim. Seria uma lição para seu chefe; homem egoísta, autoritário, aprenderia que é possível, sim, mudar o mundo. Nando-Sancho, correndo atrás, tentava, inutilmente, convencê-lo a não fazer aquilo. O novo Quixote chegou a entrar no estacionamento do prédio, mas foi detido pelos seguranças, que o levaram ao chefe. Você está demitido, gritou este.
Ele não ouvia. Tinha os olhos fixos num enorme ventilador, cujas pás giravam a toda a velocidade. E antes que o chefe pudesse dizer alguma coisa avançou para o aparelho, lança em riste.
O choque elétrico quase o matou. Mas curou-o também. Perdoado pelo chefe, voltou às suas ocupações e comporta-se direitinho. Mas de vez em quando para de digitar documentos e fica pensando na máscara que comprará no próximo Carnaval.


Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha

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