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MOACYR SCLIAR
Atrás da máscara
Carnaval: máscara homenageia Dom Quixote no Rio. Personagem de
Miguel de Cervantes completa 400 anos e também é protagonista do
enredo da Unidos da Tijuca. Cotidiano, 24.jan.2005
Até comprar a máscara
ele sabia apenas vagamente
quem era aquele tal de Dom Quixote. Mas, ao colocar a dita máscara, ficou de tal modo fascinado
que decidiu ler mais sobre o personagem de Cervantes. O livro era
muito grande, mas ele conseguiu,
na internet, um resumo menos
extenso. De imediato constatou
que a história do Cavaleiro da
Triste Figura era absolutamente
incrível. Aquela coisa de enlouquecer lendo livros de cavalaria,
de transformar uma mulher meio
grossa na dama Dulcinéia, de cavalgar um matungo chamado
Rocinante, de ter como escudeiro
o Sancho Pança, de investir contra moinhos de vento achando
que eram gigantes -aquilo tudo
mexeu com sua cabeça, exatamente como os romances tinham
mexido com a cabeça de Quixote.
Porque no fundo, disso agora se
dava conta, era um quixotesco.
Na vida real não passava de um
empregado de escritório; mas,
em seus sonhos, transformava-se
num herói popular, capaz de
liderar grandes movimentos de
massas.
Só de brincadeira, resolveu bancar o Quixote. A primeira coisa
que fez foi rebatizar a namorada
como Dulcinéia. No começo ela
não entendeu, mas quando ele
lhe contou a história de Cervantes, aderiu com entusiasmo. Com
seu amigo Nando já foi mais difícil. Nando era sensato, como Sancho, e tão gordinho quanto este,
mas, impressionado com as estatísticas sobre obesidade, decidira
fazer um regime. O novo Quixote
tratou de dissuadi-lo: preciso de
você gordo, caso contrário não
poderemos continuar amigos.
Nando concordou em adiar o regime por uns tempos.
Difícil foi arranjar uma armadura, e igualmente difícil conseguir um cavalo magro igual ao
Rocinante; custou-lhe bom dinheiro, um dinheiro que teve de
pedir emprestado, mas no fim tudo deu certo e um belo dia lá estava ele, no meio de uma movimentada avenida, vestido de Quixote
e cavalgando o Rocinante. Decidira entrar no escritório assim.
Seria uma lição para seu chefe;
homem egoísta, autoritário,
aprenderia que é possível, sim,
mudar o mundo. Nando-Sancho,
correndo atrás, tentava, inutilmente, convencê-lo a não fazer
aquilo. O novo Quixote chegou a
entrar no estacionamento do prédio, mas foi detido pelos seguranças, que o levaram ao chefe. Você
está demitido, gritou este.
Ele não ouvia. Tinha os olhos fixos num enorme ventilador, cujas
pás giravam a toda a velocidade.
E antes que o chefe pudesse dizer
alguma coisa avançou para o
aparelho, lança em riste.
O choque elétrico quase o matou. Mas curou-o também. Perdoado pelo chefe, voltou às suas
ocupações e comporta-se direitinho. Mas de vez em quando para
de digitar documentos e fica pensando na máscara que comprará
no próximo Carnaval.
Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às
segundas-feiras, um texto de ficção
baseado em notícias publicadas na Folha
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