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MOACYR SCLIAR
Aprendendo com o crime
Agora: como poderia ele imaginar que um cego, e ainda por cima franzino, teria tamanha força nos braços?
1 - Evitando fatores de risco
Mulher branca e rica é maior vítima de
crime. O fator que mais contribui para aumentar a chance de ser vítima de roubo, furto, assalto é portar armas. Outros fatores: freqüentar eventos sociais, morar em áreas de alto padrão, ser mulher.
Cotidiano, 31 de março de 2008
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ELA ACREDITAVA MUITO em estudos e pesquisas científicas.
Por isso, quando leu as estatísticas a respeito das vítimas mais
freqüentes de crimes, decidiu tomar
suas providências. Rica e viúva, era
algo que sem dúvida precisava fazer.
Portar arma aumentava a chance
de assalto? Imediatamente tratou
de livrar-se da pequena pistola que
usava na bolsa. Aliás, nem sabia usar
aquela coisa. Mas, se um assaltante
descobrisse que tinha arma, obviamente se transformaria em vítima
preferencial. Naquela noite, voltando de uma festa, passou de carro por
um pequeno lago; aproveitou a
oportunidade, abriu a janela e jogou
a pistola na água. Enquanto fazia isso, um homem se aproximou e assaltou-a. Tirou-lhe a bolsa, as jóias e deu-lhe uma surra.
O que serviu de advertência. Fora
assaltada enquanto voltava da festa?
Previsível: freqüentar eventos sociais era fator de risco. Deixou de fazê-lo. Já não saía mais da casa, situada num elegante bairro. E na casa foi
assaltada. Como disse o ladrão, morando sozinha e sendo mulher, ela
estava pedindo.
Resta outro fator de risco: ela é
mulher. E está pensando muito a
respeito. Ainda não decidiu nada,
mas já tem o telefone de um cirurgião que faz operação de mudança
de sexo.
2 - O pior cego
Quando viu Valtemir da Silva, 38, vendedor ambulante cego, caminhando pelo
centro de São José do Rio Preto, César
Pereira, 28, achou que ele seria alvo fácil
para uma tentativa de roubo. Mero engano: ao levar um esbarrão e ter o telefone
celular roubado, o franzino Silva reagiu,
imobilizou o ladrão e pediu ajuda.
A Polícia Militar deteve Pereira. O assaltante negou o crime, mas foi descoberto
quando, subitamente, o celular tocou: o
aparelho estava na cueca dele. Cotidiano
AO DELEGADO, O assaltante contou que estava apenas começando na carreira do crime. E
começando mal, tinha de reconhecer. Fracassara em sua primeira tentativa de assalto e agora estava ali, na delegacia, prestes a curtir uma temporada na prisão. Mas alguma coisa
aprendera com o insucesso. Na verdade, duas coisas.
A primeira delas: facilidades são
enganosas. Vendo o cego, achara
que ali estava a vítima ideal: um homem que caminhava com dificuldade, tateando o chão com sua bengala.
E que levava um celular preso à
cintura, pedindo para ser arrebatado. Agora: como poderia ele imaginar que um cego, e ainda por cima
franzino, teria tamanha força nos
braços? E fora exatamente isso que
acontecera: o cego o prendera num
abraço poderoso, que nada tinha de
afetivo: queria apenas imobilizá-lo
até que chegasse a polícia.
Segunda coisa: fora um erro colocar o celular na cueca. Aliás, isso ele
já deveria saber, depois daquela experiência dos caras presos com um
monte de dólares nas cuecas. Um incidente que divertira todo o país e
que poderia lhe ter servido de
advertência.
Esses erros ele não mais cometeria. Daí por diante, na senda do crime, manteria os olhos bem abertos.
Como dizia um vizinho seu, o pior
cego é aquele que não quer ver. E o
vizinho seguramente sabia do que
estava falando. Porque era cego e
nunca fora assaltado.
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção (no caso, nem tão ficção) baseado em notícias
publicadas na Folha
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