São Paulo, domingo, 7 de junho de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TRÊS BEIJOS Ursinho e santa convivem no quarto

do enviado especial

Quase não há brinquedos no quarto que abriga Luana e Luciano em Jacareí. Um coelho de papelão, um pequeno urso de pelúcia, um cachorro dálmata de gesso, um carrinho de bebê e um pirulito dividem o espaço com símbolos da liturgia católica.
Sobre a cômoda, um terço se espalha entre imagens do menino Jesus e de Maria. Logo em frente, perto da cama, a parede sustenta outro quadro de Nossa Senhora -a do Bom Parto.
Fora dali, na sala de piso avermelhado, um par de pôsteres exibe dizeres cristãos. "Nós somos aquilo que amamos." "Nada de grande se faz sem uma parcela de amor."
O mundo que Luana habita desde janeiro, quando chegou à cidade, é assim: repleto de referências religiosas.
A casa onde está pertence ao Hospital e Maternidade São Francisco de Assis. Construído há 12 anos por um grupo de 30 pessoas -médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais, que ainda hoje o administram-, tem 85 leitos e atende sobretudo pacientes de convênios públicos.
A maior parte dos fundadores mora nas redondezas e compõe a Comunidade Senhor da Vida. São homens e mulheres, casados ou não, que -"à semelhança dos primeiros cristãos"- buscam "o equilíbrio sadio entre oração, trabalho e recreação".
Todos os dias, assistem à missa, rezam o terço, saúdam Maria com o ângelus e meditam sobre "a palavra de Deus" durante pelo menos 15 minutos.
Mensalmente, promovem retiros espirituais e depositam no mínimo 10% de seus rendimentos em um caixa comum.
Os solteiros fazem voto de castidade. Os casados seguem os preceitos da Igreja Católica sobre sexo e anticoncepção.
Maria Nair Lopes, uma das companhias mais frequentes de Luana, é membro da comunidade. Encara "como missão" tudo o que viveu nos últimos cinco meses.
"Lembro-me muito bem da noite em que o pessoal da diocese decidiu viajar para impedir o aborto", conta. "Por telefone, me perguntaram se estava disposta a ajudar. Respondi sem hesitação: "Faço o que for preciso. Quero salvar o bebê'."
Àquela altura, ainda não sabia que iria deixar temporariamente a própria casa para morar com Luana -e muito menos que se tornaria madrinha de Luciano, batizado quatro dias depois de nascer pelo bispo d. Nelson Westrupp, de São José dos Campos.
"Todo ser humano é outro Cristo, representa o ápice da criação divina", explica Nair, quando lhe questionam por que considera o aborto "inconcebível em qualquer situação".
A ginecologista e ex-secretária de Saúde de Jacareí Elizabeth Kipman Cerqueira integrou a comitiva de três mulheres que, representando a comissão diocesana, se deslocou para Sapucaia e ofereceu auxílio à família de Luana.
"Não forçamos ninguém a nada. Os pais da menina só enxergavam a alternativa do aborto. Nós lhes mostramos outro caminho. Eles o aceitaram porque quiseram", argumenta a médica de 55 anos, mãe de quatro filhos, que também faz parte da Comunidade Senhor da Vida.

Mosqueteiras
Em fevereiro, o jornal "Expressão" -editado pela Diocese de São José dos Campos- trouxe uma reportagem de duas páginas sobre o caso. Deu-lhe o título de "A Luta para Salvar uma Criança que Ainda Não Nasceu...".
O texto detalhava "a verdadeira operação de guerra" que acabou evitando o aborto. Chamava as representantes da comissão que viajaram a Sapucaia de "três mosqueteiras".
Depois que o bebê nasceu, outra publicação -o informativo bimestral do hospital São Francisco de Assis- festejou.
"Aconteceu a vitória da vida!", dizia o artigo de uma página. "Venceram todos os que consideram cada ser humano mais importante do que qualquer violência. Aqueles que sabem que (...) só o amor pode apagar definitivamente um trauma. A vida vence a morte, sempre!"

Catequista
De família católica, Luana parece impregnada pela religiosidade que a cerca.
No início desta semana, fez questão de levar Luciano "para conhecer" a Basílica Nacional, em Aparecida (170 km a nordeste de São Paulo).
Enquanto estava grávida, respondeu por escrito algumas perguntas que Nair lhe apresentou:
"O que é ser mãe para você?"
"A mãe é muito importante na educação religiosa de seus filhos, sendo a sua primeira catequista. Na doença, está sempre ao seu lado como a sua enfermeira."
"O que está sendo a gravidez para você?"
"Muito bom. Estou aprendendo com a ajuda de Deus e da Virgem Maria a valorizar a vida e sentir a importância dessa vida em mim. A minha gravidez não é doença. É saúde. Eu estou sempre com a Nossa Senhora da Aparecida e a Nossa Senhora do Bom Parto."



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.