São Paulo, quinta-feira, 07 de setembro de 2006

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PASQUALE CIPRO NETO

"Que flui" ou "que flua"?


A questão transcende os tênues limites do "certo ou errado". O que importa é o matiz de cada modo verbal
NA SEMANA PASSADA , tratei da palavra "estruturantes", empregada por Geraldo Alckmin ("O Brasil, se não fizer reformas estruturantes, não vai melhorar a questão tributária"). Afirmei que não é preciso recorrer a dicionários para deduzir que "estruturante" é "aquilo ou aquele que estrutura".
Muitos leitores perguntaram se, na definição dada, a forma verbal "estrutura" não deveria ter sido substituída por "estruture" ("aquilo ou aquele que estruture"). Eis uma bela questão sobre o emprego e o valor dos três modos verbais (indicativo, subjuntivo e imperativo).
O imperativo expressa ordem, pedido. Na definição do "Houaiss", o indicativo é o modo "por meio do qual se expressa a ação ou o estado denotado pelo verbo como um fato real"; o subjuntivo é o modo "por meio do qual o falante expressa a ação ou o estado denotado pelo verbo como um fato irreal, ou simplesmente possível ou desejado...".
Até aí, tudo normal. Estamos no terreno das definições, dos valores intrínsecos. O que nos interessa é o uso efetivo de cada modo, especialmente do indicativo e do subjuntivo.
Sempre haverá apenas uma opção entre os dois modos? Se assim não for, que diferença há entre "reformas que estruturam" e "reformas que estruturem" ou entre "seres que crêem" e "seres que creiam"? Vamos lá. Quando se define "estruturante" como "aquilo ou aquele que estrutura", emprega-se o modo indicativo justamente porque não se atrela o conceito a contextos. Fala-se do conceito em si, posto, portanto, no plano da realidade das coisas, dos valores estabelecidos. Assim, define-se "fluente" como "que flui" (e não como "que flua"), "fascinante" como "que fascina" (e não como "que fascine"), "abrangente" como "que abrange" (e não como "que abranja") e assim por diante.
No contexto, a história muda completamente. A opção pelo modo indicativo ou pelo subjuntivo é determinante para que se deixe claro o plano em que se coloca o que é denotado pelo verbo. Assim, quando se diz "reformas que estruturam", por exemplo, manifesta-se a certeza de que essas reformas realmente estruturam, ou seja, têm o poder de estruturar, de determinar a estruturação.
Quando se diz "reformas que estruturem", coloca-se no plano do possível ou do desejado o potencial dessas reformas de estruturar algo. Como se vê, a questão passa muito longe dos simplórios conceitos de "certo ou errado". Quando Machado de Assis optou por "são" em "Talvez os gatos são menos matreiros" (trecho de "O Menino é Pai do Homem", capítulo 11 de "Memórias Póstumas de Brás Cubas"), deixou clara uma convicção: os gatos são mesmo menos matreiros (do que o narrador). Convém lembrar a passagem toda: "Cresci; e nisso é que a família não interveio; cresci naturalmente, como crescem as magnólias e os gatos. Talvez os gatos são menos matreiros...".
Leve em conta o contexto, caro leitor. Note que o menino cresce livre, sem freio -como os vegetais ou os seres irracionais. A dúvida lançada pelo advérbio "talvez" (que seria reforçada por "sejam", do subjuntivo) logo se desfaz, justamente pela opção por "são", do indicativo.
A questão transcende os tênues limites do "certo ou errado". No caso, o que importa é levar em conta os matizes de cada modo verbal. É isso.

inculta@uol.com.br


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