São Paulo, segunda, 7 de setembro de 1998

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COTIDIANO IMAGINÁRIO
Às margens plácidas do Ipiranga, o futuro

MOACYR SCLIAR

Agência baixa avaliação do Brasil. Dinheiro, 4/9/98

É a cena clássica, tal como retratada no óleo de Pedro Américo. Ali estão, às margens plácidas do Ipiranga, dom Pedro e sua comitiva. Ele acabou de receber a notícia de que as cortes portuguesas querem reforçar o seu domínio sobre o Brasil. Ele se indignou, ele puxou a espada, ele gritou: "Independência ou Morte!".
Mas... O que está acontecendo? Dom Pedro ficou subitamente pálido. Seu olhar, antes brilhante, agora parece vazio, perdido no espaço. Parece que... Será? Será mesmo?
É, sim. Ali, às margens plácidas do Ipiranga, dom Pedro está tendo uma premonição. Ele está vendo o futuro diante de si. O que ele tem é uma visão de muitas décadas por vir, uma visão que se estende, com impressionante nitidez, até o final do século 20. É a crise de 98 que ele está vendo, nas manchetes dos jornais, no noticiário da TV (TV: é uma surpresa para ele).
E, tendo visto o que viu, dom Pedro já não é o mesmo. O entusiasmo foi-se. Ele sente que a frase famosa ficou lamentavelmente incompleta. De modo que, sem erguer a espada e numa voz até vacilante, prossegue:
- Independência ou morte, sim. Independência ou morte, independência ou globalização. Independência ou nó cambial, nó cambial significando, nesse contexto, moeda supervalorizada, dificuldade de exportação e déficit comercial. Independência ou relatório da Moody's rebaixando ainda mais a nota da dívida externa de nosso país. Independência ou turbulência na Bolsa, que passa a funcionar de acordo com o mercado financeiro internacional, com subidas e quedas violentas. Independência ou capitais voláteis entrando e saindo do país. Independência ou juros altos, satisfazendo os investidores, mas infernalizando a vida de produtores e consumidores. Enfim: independência ou complexa conjuntura, com soluções possíveis, mas todas dolorosas. Porém - a que preço, a independência, numa economia planetária, em que sofrem os isolacionistas?
Todos olhavam sem entender, e todos estavam angustiados, à exceção do carreteiro que por ali passava e que estava só preocupado em chegar à casa a tempo de jantar. E então dom Pedro lançou um novo, e histórico, brado:
- Vocês decidem!
Os cronistas que ali estavam decidiram excluir o pronunciamento premonitório do relato que fariam para a história. Com o grito do Ipiranga os alunos do futuro já teriam dificuldade bastante. Para que complicar?


O escritor Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal



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