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São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2003

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BRASIL DESCONHECIDO

A 10 km de Barra do Una, Monte de Trigo pode ser avistada de praias como Maresias e Toque-Toque Pequeno

Ilha isola comunidade no litoral norte

CYNARA MENEZES
ENVIADA ESPECIAL AO LITORAL NORTE

Está a duas horas e meia de carro de São Paulo, só que ninguém lá sabe dirigir. Da areia de praias do litoral norte, como a calma Toque-Toque Pequeno ou a agitada Maresias, a ilha Monte de Trigo pode ser facilmente avistada. O que poucos sabem é que, há pelo menos 200 anos, tem gente morando nela.
O Montão, como é chamado pelos continentais, é uma das ilhas habitadas do litoral norte. Fica a 10 km da praia em Barra do Una, onde os homens vêm à terra comercializar o peixe. Os moradores vivem da pesca, ainda feita em canoa, com linha e anzol.
A viagem até lá dura 30 minutos em uma lancha grande. Não é possível encostar no cais: a água rasa e o fundo de pedras só permitem a chegada de uma embarcação pequena. O ancoradouro foi construído com troncos para a rolagem das canoas escarpa acima, puxadas por uma corda. O mar é azul, translúcido.
Aproximando-se sobre as águas, vem Ítalo, 32, em sua canoa, com algumas lulas que pegou. Ele dá uma carona até a ilha, mas não fala muito. É magro, queimado de sol, alguma barba, narigudo e com a cara encovada como a de Alfredo, 70, seu tio, que aparece tímido na janela da primeira casa que se vê, escondida atrás das árvores.
Todos os 40 moradores são Oliveira. O sobrenome se manteve através dos anos porque o Montão é uma ilha masculina. As mulheres se casam com homens do continente e vão embora. As poucas que ficam se unem aos primos. Muitos homens saem, mas voltam -trazem mulheres consigo, que não aguentam o isolamento e rumam à costa. Forasteiro homem teve só um tal "catarinense", que também escapuliu.
"Eu é que não quis casar com prima. Os filhos nascem tudo baixinho", diz Rubens, 40, filho de Alfredo, cuja mulher mora hoje em Bertioga. Baixinhos nem tanto, mas parecidos: a estirpe de seu Alfredo tem nariz adunco e feição quixotesca. Do lado de seu Maneco, 72, o outro ancião, todos são cheios e com traços indígenas.
As duas filhas de Maria da Conceição, 67, foram morar em Ubatuba. "Não vê aquela formiguinha que cria asa e voa? Assim é a mulher", filosofa. Natural de Juqueí, casou com o irmão de Alfredo, e sua irmã, com o irmão dele. A história dos dois irmãos casados com duas irmãs acabou se transformando numa versão para a origem da ilha -para os nativos, tudo começou assim.
As casas também são semelhantes. Apesar da natureza exuberante e do exotismo de subsistirem como quando começaram a povoar a ilha, os habitantes do Montão vivem mesmo em condições precárias. As casas são de compensado, chão e paredes; o teto é de zinco. Só há banheiros na escola e na igreja evangélica. Há água encanada de uma nascente.
Falta médico. Há 34 anos, quando a mulher de seu Maneco teve a caçula dos quatro filhos, sofreu uma infecção e morreu na metade do caminho da viagem de barco. E até hoje é assim. "Sempre que alguém cai doente, tem que atravessar o mar "brabo'", reclama Fátima, 23, mulher de Ítalo. A última viagem também é para a costa: os corpos são enterrados no cemitério de Barra do Una.
Se o peixe escasseia, passam aperto. "Eles ganham uma cesta básica da Prefeitura de São Sebastião. Mas ela só vem de vez em quando", diz a professora Benedita Salgues, 50. Benedita passa o mês inteiro na ilha, para cada fim de semana em terra. Além de ensinar, prepara a merenda escolar e quer alfabetizar os adultos. "Muitos na ilha assinam com a digital."
A agricultura já foi importante em Monte de Trigo, embora nunca tenha produzido o cereal que lhe dá nome. No século passado, produziam café, melado e mandioca, vendidos na costa. Chegaram a ter quatro engenhos de farinha. Hoje, não há mais nenhum.
Os pescadores atribuem o abandono das roças aos ratos, que destroem tudo o que plantam. Os roedores teriam chegado escondidos nos blocos utilizados para a construção da escola, inaugurada pelo governo do Estado em 1986. Seu Maneco, que já não pesca e por isso mantém sua roça de subsistência, duvida: "É preguiça".
Quando não há dinheiro para comprar os mantimentos, volta-se às origens: ao "azul-marinho", cozido de banana verde com peixe amassado, ou o purê de "cará-de-espinho", amassado no pilão. E café. Não tem pão, não tem bar. As crianças não parecem sentir falta de refrigerantes, mas devoram as bolachas que trazemos.
A menina Carolayne, 6, já decidiu que gosta mais de Ubatuba, onde moram os primos. "Lá tem boneca de cabelo comprido", explica. Ela e a irmã, Fabiane, 5, correm descalças pela ilha, puxando a reportagem pela mão. Seu irmão Wagner, 7, é arredio, como o pai Ítalo e os demais rapazes.
Foram mais festeiros no passado. Depois que os evangélicos chegaram, nos anos 80, as tradições de origem católica foram abandonadas. Havia longos bailes na época do Natal e reuniões em volta da fogueira, ao som do violão, no dia de São Pedro.
Os tempos não levaram o correio à ilha, mas quase todo mundo tem um celular. A TV ainda é pouco vista, porque a energia é obtida com geradores. E o programa preferido é o noticiário. Se para os ilhéus viver no meio do oceano não é fácil, morar no continente pode ser pior. "Só tem tragédia", desdenha Eliana, 34.



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