São Paulo, quinta-feira, 08 de janeiro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PASQUALE CIPRO NETO

"Ide-a lá buscar, que se a não trouxerdes..."


O bicho pega de vez para quem teve "professores" que julgam que só se deve falar da língua viva, da língua de hoje

A PROVA DE PORTUGUÊS DA FUVEST, realizada domingo, apresentou uma questão cujo enunciado assim começava:
"Leia os seguintes versos, extraídos de uma canção de Dorival Caymmi".
Convém dizer que a Fuvest atribuiu a Caymmi versos de Manuel Bandeira. É dele o poema "Balada do Rei das Sereias", especialmente musicado por Caymmi, em 1987, para um projeto da talentosíssima cantora e compositora Olívia Hime, hoje diretora da mecênica gravadora Biscoito Fino, verdadeiro orgulho do Brasil.
Posto isso, vamos ao excerto dos versos destacados pela Fuvest: "O rei atirou / Sua filha ao mar / E disse às sereias: / -Ide-a lá buscar, / Que se a não trouxerdes / Virareis espuma / Das ondas do mar! / Foram as sereias... / Quem as viu voltar?... / Não voltaram nunca! / Viraram espuma / Das ondas do mar.".
A banca formulou duas questões sobre os versos musicados por Caymmi. Eis a primeira: "Aponte, na fala do rei (primeira estrofe), um efeito expressivo obtido por meio do emprego da segunda pessoa do plural".
Pois bem. Ausente no português brasileiro vivo de hoje, a segunda pessoa do plural (vós) é comum em textos clássicos (literários, filosóficos, religiosos). Não é à toa que frases como "Não sois máquinas; homens é que sois!" (de C. Chaplin) são escritas (traduzidas, no caso) na segunda do plural. Também não foi à toa que Gilberto Gil escolheu a segunda do plural para escrever a sua belíssima "Tempo Rei" ("Transformai as velhas formas do viver!").
Nos versos de Bandeira, o efeito expressivo decorrente do emprego da segunda do plural é justamente o da sacralidade, do distanciamento, da formalidade, o que, numa história em que o protagonista é um rei, praticamente impõe formas linguísticas adequadas à época dos reis.
O segundo item da questão era este:
"Sem alterar o sentido, reescreva a fala do rei, passando os verbos para a 3ª pessoa do plural e substituindo, por outra, a conjunção que". Agora o bicho pega de vez, ao menos para quem teve o azar de estudar com "professores" que julgam que nas aulas de português só se deve falar da língua viva, da língua de hoje.
A forma "ide" (da segunda do plural do imperativo afirmativo de "ir") resulta da eliminação do "s" final de "ides" (da segunda do plural do presente do indicativo). É esse o mecanismo pelo qual se forma a segunda do plural do imperativo afirmativo "clássico" de 99,99% dos verbos da língua. O único verbo que não segue o caminho é "ser", que tem a forma autônoma "sede".
A terceira pessoa do plural do imperativo afirmativo vem de outra fonte (o presente do subjuntivo).
No caso do verbo "ir", temos "vão".
Um detalhe: a substituição de "ide" por "vão" impõe a troca de "a" (de "Ide-a lá buscar") por "na" ("Vão-na lá buscar"), já que o ditongo nasal (de "vão") provoca o acréscimo de "n" ao pronome oblíquo "a".
A flexão "trouxerdes" (da segunda pessoa do plural do futuro do subjuntivo de "trazer") passa a "trouxerem" ("Se a não trouxerem"); "virareis" (do futuro do presente do indicativo) se transforma em "virarão". A conjunção "que", de valor explicativo, dá lugar a "pois".
Moral da história: "Vão-na lá buscar, pois se a não trouxerem virarão espuma das ondas do mar!".
A esta altura, o leitor talvez esteja perguntando por que diabos o "a" vem logo depois do "se" ("Se a não trouxerdes/trouxerem"). Isso é assunto para outra coluna. É isso.

inculta@uol.com.br


Texto Anterior: Prefeito não irá reduzir cargos nas secretarias
Próximo Texto: Trânsito: Obra do metrô interdita via na região da Vila Prudente
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.