São Paulo, quarta-feira, 08 de março de 2000


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DESAFINANDO A HISTÓRIA

O Carnaval encoraja a ação

MANOLO FLORENTINO

A Imperatriz compôs talvez o melhor Carnaval deste ano. Samba, comissão de frente e alegorias estabeleceram as mais completas alusões historiográficas. Perfeita a inscrição do descobrimento na história do império português. Embora remeta à tese da acidentalidade e à fábula do encontro das raças, o belo samba traz no título e no refrão a bem-vinda marca da irreverência no trato de temas "sérios" - de modo geral, o humor esteve ausente das letras cariocas.
A Beija-Flor montou um arrebatador painel histórico. Bobagem buscar qualquer pertinência acadêmica: o enredo é francamente espiritualista. Puro cinema, transformou em invasão o descobrimento, apontou para o sofrido lugar do negro e para a iníqua desigualdade social. Desmontou a harmonia racial. É dela a mais bela e crítica estrofe: "Meu Rio, eu sonhei/que o Senhor havia nos dado a mão/que havia ordem, progresso e perdão/e um ser de luz a iluminar/e hoje eu canto/ oh! pátria amada! me envolvo em seu manto/por essa terra sem dono, sem leis/pra ver o sonho que sonhei".
Sob a égide da necessária licença poética, "Brasil: Visões de Paraísos e Infernos" traz no título a imagem de Sérgio Buarque de Holanda. A saga do descobrimento, conquista e colonização teve por base esses extremos, anunciados na abertura do samba. Mesmo o edenismo esteve lado a lado com o inferno. A parte final da letra da Viradouro localiza a redenção não no sonho, mas na realidade que já se anuncia. Joãosinho Trinta fez da história pretexto para um fenomenal exercício sobre as cores. Ode às três raças.
A Unidos da Tijuca deu sequência à tematização do descobrimento. Abordou a viagem de Cabral, os mitos marinhos e teve o mérito de atentar para a radicalidade do encontro entre portugueses e índios. Tudo bem, assumiu-se a tese da acidentalidade, mas jamais se quis ir além do "folhear a história". Forte a presença do edenismo.
O Salgueiro esteve perfeito nas alusões históricas. Mas a vinda da família real foi pretexto para pintar o panorama de seus grandes desfiles -uma história dentro da história. Vale observar o resgate da figura de dom João, usual e injustamente transformado em caricatura até por especialistas na matéria. Ótimo e irreverente o "gira, gira, capital": remete a dinheiro e ao Rio de Janeiro, capital do Brasil, Reino Unido a Portugal e Algarves.
"Dom Obá 2º, Rei dos Esfarrapados, Príncipe do Povo" é samba étnico originalíssimo: passa ao largo da fábula da harmonia racial e assume o ponto de vista do negro, sem o maniqueísmo dos que tomam o Brasil por nação multicultural. Ainda que forte a presença da mãe África, o abrasileiramento se inscreve na própria biografia de Obá. Culmina na referência à exclusão social do negro e de toda a ralé.
Expressivo exemplo de circularidade cultural à la Ginzburg a loucura de Obá: "Sonho ou realidade?/uma dádiva do céu/vi no morro da Mangueira/sambar de porta-bandeira/a princesa Isabel". Destino injusto os percalços técnicos na passarela.
Boa a idéia de resgatar os ícones da cultura de resistência dos anos de chumbo. Ao fim da teatralizada passagem da União da Ilha, fica a sensação de que os elementos postos em cena remeteram menos a um tempo do que a uma atitude -não gratuitamente, ao cantar o samba, cada integrante dava a impressão de postular para si o ideário de contestação dos anos 60 e 70. Por tudo isso, esse "desfile engajado" passou ao largo de qualquer esquerdismo vazio.
Claro, a abordagem dos 500 anos assumiu contornos de fábula. Georges Duby tem razão, nenhuma utopia apela para a revolução permanente. Mas, partindo-se de uma visão mítica do passado, projeta-se um futuro perfeito ou pelo menos não tão injusto. O Carnaval encoraja a ação.


Manolo Florentino é historiador da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


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