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DESAFINANDO A HISTÓRIA
O Carnaval encoraja a ação
MANOLO FLORENTINO
A Imperatriz compôs talvez o
melhor Carnaval deste ano.
Samba, comissão de frente e
alegorias estabeleceram as
mais completas alusões historiográficas. Perfeita a inscrição
do descobrimento na história
do império português. Embora
remeta à tese da acidentalidade
e à fábula do encontro das raças, o belo samba traz no título
e no refrão a bem-vinda marca
da irreverência no trato de temas "sérios" - de modo geral,
o humor esteve ausente das letras cariocas.
A Beija-Flor montou um arrebatador painel histórico. Bobagem buscar qualquer pertinência acadêmica: o enredo é
francamente espiritualista. Puro cinema, transformou em invasão o descobrimento, apontou para o sofrido lugar do negro e para a iníqua desigualdade social. Desmontou a harmonia racial. É dela a mais bela e
crítica estrofe: "Meu Rio, eu sonhei/que o Senhor havia nos
dado a mão/que havia ordem,
progresso e perdão/e um ser de
luz a iluminar/e hoje eu canto/
oh! pátria amada! me envolvo
em seu manto/por essa terra
sem dono, sem leis/pra ver o
sonho que sonhei".
Sob a égide da necessária licença poética, "Brasil: Visões
de Paraísos e Infernos" traz no
título a imagem de Sérgio
Buarque de Holanda. A saga do
descobrimento, conquista e colonização teve por base esses
extremos, anunciados na abertura do samba. Mesmo o edenismo esteve lado a lado com o
inferno. A parte final da letra
da Viradouro localiza a redenção não no sonho, mas na realidade que já se anuncia. Joãosinho Trinta fez da história pretexto para um fenomenal exercício sobre as cores. Ode às três
raças.
A Unidos da Tijuca deu sequência à tematização do descobrimento. Abordou a viagem de Cabral, os mitos marinhos e teve o mérito de atentar
para a radicalidade do encontro entre portugueses e índios.
Tudo bem, assumiu-se a tese
da acidentalidade, mas jamais
se quis ir além do "folhear a
história". Forte a presença do
edenismo.
O Salgueiro esteve perfeito
nas alusões históricas. Mas a
vinda da família real foi pretexto para pintar o panorama de
seus grandes desfiles -uma
história dentro da história. Vale observar o resgate da figura
de dom João, usual e injustamente transformado em caricatura até por especialistas na
matéria. Ótimo e irreverente o
"gira, gira, capital": remete a
dinheiro e ao Rio de Janeiro,
capital do Brasil, Reino Unido a
Portugal e Algarves.
"Dom Obá 2º, Rei dos Esfarrapados, Príncipe do Povo" é
samba étnico originalíssimo:
passa ao largo da fábula da harmonia racial e assume o ponto
de vista do negro, sem o maniqueísmo dos que tomam o Brasil por nação multicultural.
Ainda que forte a presença da
mãe África, o abrasileiramento
se inscreve na própria biografia
de Obá. Culmina na referência
à exclusão social do negro e de
toda a ralé.
Expressivo exemplo de circularidade cultural à la Ginzburg
a loucura de Obá: "Sonho ou
realidade?/uma dádiva do
céu/vi no morro da Mangueira/sambar de porta-bandeira/a
princesa Isabel". Destino injusto os percalços técnicos na passarela.
Boa a idéia de resgatar os ícones da cultura de resistência
dos anos de chumbo. Ao fim da
teatralizada passagem da
União da Ilha, fica a sensação
de que os elementos postos em
cena remeteram menos a um
tempo do que a uma atitude
-não gratuitamente, ao cantar o samba, cada integrante
dava a impressão de postular
para si o ideário de contestação
dos anos 60 e 70. Por tudo isso,
esse "desfile engajado" passou
ao largo de qualquer esquerdismo vazio.
Claro, a abordagem dos 500
anos assumiu contornos de fábula. Georges Duby tem razão,
nenhuma utopia apela para a
revolução permanente. Mas,
partindo-se de uma visão mítica do passado, projeta-se um
futuro perfeito ou pelo menos
não tão injusto. O Carnaval encoraja a ação.
Manolo Florentino é historiador da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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