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São Paulo, domingo, 08 de junho de 2003

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DANUZA LEÃO

Um amigo

Eu quero ter um amigo que não saiba de nenhuma dessas coisas que todo mundo acha que tem de saber. Que aprecie um bom prato, mas que não tenha conhecimentos sobre a alta gastronomia e que nunca tenha ouvido falar no restaurante El Bulli. Esse homem deve ser tão mal informado que nem sabe que existem pessoas que pagam a outras pessoas para escolher móveis, quadros, tapetes, objetos e lençóis da casa onde vão morar.
Na sala desse homem devem existir apenas uma estante, um sofá e uma poltrona forrados do mesmo tecido, talvez um abajur de pé e um piano com uma flanela sobre as teclas. Não que ele saiba tocar, é apenas o piano da família que foi ficando porque ninguém mais quis (e quando alguém passa levanta a tampa e pressiona uma ou duas teclas assim, para nada, no máximo toca o bife). Faz bem ter um piano numa casa.
Ele nunca terá ouvido falar de nenhuma grife ou marca de relógio, mas conhece o vento, sabe quando o tempo vai mudar e sabe também quando alguém está alegre, triste ou com medo, que seja gente ou bicho.
Eu quero um amigo que identifique o aroma das flores e não o dos perfumes dos frascos, que ache bonito uma mulher com quadris largos e seios fartos e que dê valor à bondade. Um amigo capaz de ficar muito tempo calado, olhando o mar ou a mata, ouvindo os ruídos da natureza e o silêncio, que conheça as estrelas pelo nome e que sempre, antes de se deitar, vá olhar o céu para saber se no dia seguinte vai chover ou fazer sol.
Um amigo de quem os bichos e as crianças gostassem logo à primeira vista, que chegasse sempre na hora certa -que não seria nunca a mesma-, e que fosse embora na hora que tivesse que ir, só por sensibilidade. Um amigo cuja presença trouxesse calma e harmonia, e perto de quem não se teria medo de nada, nem de quando falta luz, nem de cobra, nem da maldade dos homens.
Eu quero ter um amigo, só um, que não saiba o nome de nenhum vinho, mas que de vez em quando tome uma bebida muito forte; que nunca tenha ouvido falar de trufas, nem brancas nem pretas, que não saiba quais são os homens mais ricos do mundo da revista "Forbes" e que às vezes chegasse com um peixe enrolado num jornal, um peixe bem fresco que ele não resistiu e comprou, para ser feito no forno regado por um honesto azeite português, como antigamente.
Esse homem teria um sorriso muito franco e muito doce e muito bom, daqueles em que você acreditaria por saber que é de verdade; ele seria uma pessoa de quem nunca, nunca se desconfiaria, até porque ele nunca mentiu nem fingiu, porque nunca teve nenhuma razão para isso. Aliás, pensando bem, por que será que as pessoas mentem e fingem?
Esse homem teria um carro meio velho, um só suéter e um só paletó para os dias mais frios e teria poucos amigos, mas amigos que contariam com ele incondicionalmente. Ele entenderia da alma humana sem nunca ter lido Freud, não seria ligado em datas e conheceria um pouco de botânica sem nunca ter estudado, só porque acha a natureza uma coisa muito interessante, mais do que quase tudo.
Eu quero um amigo capaz de me surpreender, e que às vezes se surpreendesse com minhas bobagens. Eu quero ser muito amiga desse homem, quero uma amizade em que não haja competição de futilidades, um dizendo que conhece uma aldeia no interior da Tanzânia, o outro rebatendo com um acampamento no Quênia, um falando do caviar fresco do Irã e o outro de um hotel seis estrelas que só pouquíssimos conhecem, porque essas conversas são muito cansativas e sempre iguais.
Ah, como eu queria ter um amigo assim; e se ele fosse mais do que um amigo, melhor ainda.

E-mail - danuza.leao@uol.com.br


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