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São Paulo, domingo, 08 de junho de 2003

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GILBERTO DIMENSTEIN

Os heróis anônimos

Reunidos na semana passada, dirigentes de escolas particulares decidiram que, a partir do próximo ano, as matrículas devem ser aceitas somente depois que os estudantes apresentarem um fiador.
Há propostas ainda mais duras para enfrentar o calote, estimado nacionalmente em 35% das matrículas. Querem lançar os devedores numa lista negra e expulsá-los, mesmo que estejam no meio do ano letivo.
Os principais prejudicados por essas medidas não são os estudantes de classe média das escolas privadas do ensino básico. O alvo delas são os heróis noturnos, que, ex-alunos de escolas públicas, são obrigados a trabalhar durante o dia e a estudar à noite na faculdade.
Mais suscetíveis à crise econômica, marcada pelo desemprego e pelo achatamento salarial, eles enchem as estatísticas de inadimplência ao mesmo tempo em que estimulam a explosão do ensino superior privado.


Psicólogos discutem os perigos da geração "tanto faz" -jovens de classe média e alta vítimas do excesso de facilidade material e de escassez de aconchego espiritual dos pais. Tal combinação, alertam, produziria indivíduos mimados, com dificuldade de lidar com a frustração. Diante da menor dificuldade, desistem.
O contraponto da geração "tanto faz" são os heróis noturnos. Não medem esforços para superar as fragilidades educacionais de quem veio de uma escola pública, apostam tudo no conhecimento e enfrentam a maratona do trabalho diurno e do estudo noturno; fins de semana e feriados são usados para fazer lições.
Nessa batalha pelo conhecimento, reproduzem a garra e o heroísmo anônimo dos migrantes e imigrantes.


É um grupo de sobreviventes. A imensa maioria dos brasileiros que frequenta escolas públicas tomba muito antes de chegar às portas da faculdade.
Documento produzido pelo MEC, divulgado na quarta-feira passada, informa que em só em 19 cidades brasileiras os indivíduos têm, em média, oito anos de escolaridade -o que significa terem cursado apenas e tão-somente o ensino fundamental.
Os sobreviventes passaram pelos oito anos e fizeram mais três anos de ensino médio, trabalhando desde a adolescência. Não tiveram como entrar numa universidade gratuita e se ralam para pagar a mensalidade de instituições privadas, muitas delas de qualidade discutível -isso quando podem pagar.


Não faz sentido exigir que a escola privada assuma o calote. É uma saída tão realista quanto pedir aos jornais que, em nome do direito à informação, não cortem a assinatura de quem decidiu suspender o pagamento. Ou aos restaurantes que, sensíveis à fome, não apresentem a conta aos clientes pobres.
Entendo donos de escolas que não aceitam bancar a inadimplência de seus alunos. Exigir, porém, fiador para fazer a matrícula é barrar aqueles que mais lutaram para sobreviver à peneira do ensino. Mais grave ainda é querer mandar embora um aluno no meio do ano letivo. Educadores deveriam ter vergonha de fazer tal proposta até mesmo numa sala fechada -mais ainda de transformá-la em bandeira pública.
Solução mesmo é aumentar o número de vagas nas universidades públicas, ampliando o acesso aos cursos noturnos, e garantir mais bolsas aos estudantes de faculdades privadas.


Num país que paga R$ 170 anuais por uma bolsa-escola e mais de R$ 1.000 mensais por uma vaga numa universidade pública, frequentada pelos mais ricos, não é apenas tolice mas também perversidade jogar mais dinheiro do contribuinte no ensino superior oficial.
Na semana passada, o ministro Cristovam Buarque apanhou de todos os lados porque apoiou a idéia de descontar de ex-alunos de faculdades públicas, depois de formados, um valor extra no Imposto de Renda caso ganhem R$ 3.000 mensais, patamar dos 10% mais ricos no Brasil.
Reagiram como se defendessem um direito, mas estão querendo perpetuar um privilégio. Se alguém tem de receber ajuda para estudar numa faculdade, pública ou privada, é aquele que não pode pagar.
Daí que, na minha escala de valores, as melhores notícias sociais deste ano são os programas que oferecem bolsa universitária em troca de serviços comunitários e o financiamento público de cursinhos pré-vestibulares.


PS - Mais um exemplo de heróis anônimos são universitários que, nas horas vagas, ajudam jovens a entrar na faculdade, lecionando em cursinhos pré-vestibulares. Merece entrar na história uma das iniciativas pioneiras de estudantes da Poli, da USP, que lançaram esse tipo de programa comunitário, hoje disseminado em todo o país. Melhor do que o regime de cotas é garantir que todos tenham mais condições de competir em igualdade de condições.

E-mail - gdimen@uol.com.br


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