São Paulo, domingo, 08 de agosto de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

VIDA EM FAMÍLIA

Quando a prole está sob ameaça, autopreservação fica em segundo plano

Pais heróis salvam filhos de grandes e pequenos perigos

FERNANDA MENA
DA REPORTAGEM LOCAL

O coração dispara a mais de cem batimentos por minuto, a pressão arterial aumenta drasticamente e o corpo recebe uma descarga de adrenalina -fica agitado, transpira. Poucas situações provocam efeitos tão incontroláveis e imediatos no organismo quanto ver um filho em uma situação de alto risco. A tensão é enorme e a reação, instantânea como um reflexo.
Foi isso o que fez com que o professor universitário Hélio Teixeira, 54, se atirasse em um canal e enfrentasse, no braço, um aligator -réptil aparentado com o crocodilo. Em julho de 1996, Teixeira passeava de bicicleta com a esposa e os três filhos no Parque Nacional de Everglades, na Flórida, nos Estados Unidos. Longe dos olhos do pai, que pedalava à frente do grupo, o filho do meio, Alexandre, então com sete anos, caiu num canal e, ao levantar-se, foi abocanhado por um aligator.
Teixeira ouviu os gritos da filha mais velha, abandonou a bicicleta e, sem parar para pensar um segundo que fosse, pulou no canal, agarrou a cabeça do bicho e conseguiu abrir sua boca.
"Quando vi o Alê atravessado na boca daquele bicho, não tive medo. Foi um reflexo: entrei no canal e abri a boca dele", conta o pai, que lembra ter sido informado pelos guardas do parque que a mandíbula do aligator tinha cerca de dois pés (66 centímetros) e que esses répteis gigantes têm até sete metros de comprimento. "Foi uma sensação estranha. A realidade se misturou um pouco com a fantasia. Parecia que o que estava vendo era um filme de Spielberg."
Alexandre teve ferimentos na barriga e no ombro. Passou dois dias numa UTI e mais alguns num hospital de Miami até ser liberado. "Embora incrível, espetacular e com uma tensão enorme, foi um episódio bem pouco traumático, física e psicologicamente. É uma história muito positiva", avalia Teixeira, o pai herói de Alexandre, que hoje também responde ao apelido "Jaca", de jacaré. "Ele foi um herói mesmo. Foi uma situação muito fora do comum, impressionante, de filme mesmo", admite Alexandre.
"Brincavam que, se fosse um pai americano, ligaria para o 911. Mas não acho que fui herói. Seria se tivesse salvo um estranho, mas salvar o filho é algo instintivo", diz Teixeira, subestimando sua performance a la Indiana Jones.

Um leão por dia
Longe da ameaça de crocodilos ou de cenas de ação dignas de Hollywood, para o engenheiro Décio Germano, 57, criar filhos é "matar um leão por dia", mas heroísmo mesmo é conseguir encaminhá-los na vida. "No momento em que você coloca um filho no mundo, suas preocupações não terminam nunca. E criá-los longe das drogas, formá-los com valores e dar um caminho para suas vidas é que é heróico", diz.
Mas Germano, hoje pai de duas jovens, também teve seu dia de herói cotidiano. Quando sua filha mais velha, Priscila, tinha apenas dois anos, Germano conseguiu fisgá-la pelo pé quando a menina já caía pela janela da casa do avô. "Quando a vi caindo, me atirei. Foi um susto!", lembra.
Para a professora do departamento de Psicologia Clínica da USP Isabel Cristina Gomes, esse tipo de reação é absolutamente natural. "Situações não esperadas despertam reações muitos fortes que não são racionalizadas."

Mesa cirúrgica
Há, no entanto, casos de pais heróis que salvaram suas crias de sofrimentos crônicos sem explosões de atitude, mas de maneira bastante premeditada. Foi esse o caso do oftalmologista André Borba, 33. Seu filho, Gabriel, 1, nasceu com uma obstrução congênita das vias lacrimais -por coincidência ou não, a especialidade cirúrgica de seu pai. Aos seis meses, Gabriel acordava sem conseguir abrir os olhos e, apesar de haver uma indicação de que não se faça esse tipo de cirurgia antes dos oito meses de idade, Borba arriscou. "Decidi fazer a cirurgia eu mesmo. Tecnicamente foi tranqüilo, o problema era a questão emocional", diz. "Na hora da anestesia, a ficha caiu que era meu filho, mas consegui não ficar nervoso. Estava feliz porque sabia que poderia curá-lo com aquilo."
Foi na mesa de cirurgia também que o aposentado Joko Henna, 62, salvou a filha Patrícia, 32, em 2003, quando doou um de seus rins para ela. Desde 1999, a artista plástica Patrícia vivia em torno da falência de seus rins: uma dieta alimentar chata e rigorosa, remédios e processos de diálise que tomavam a maior parte do seu dia. "Minha vida era em função da minha sobrevivência."
O pai era um doador possível, e não vacilou diante do resultado do teste de compatibilidade. "Fiquei me sentindo pai duas vezes. Olha a minha cesária aqui", diz, levantando a camisa para mostrar a cicatriz do transplante. Agora, segundo Henna, a relação com a filha está muito mais próxima. "Ela não quer desgrudar de mim", brinca.
Patrícia concorda. "Eu era mais distante, meio rebelde. Hoje, sou supergrata. Mudei meus valores."
É de praxe que, no caso de doadores vivos, aquele que doa o órgão sinta mais dores que quem recebe. "Sabia que corria um risco, mas o amor e o carinho que tenho pela minha filha fizeram com que eu nem medo sentisse."


Texto Anterior: Mortes
Próximo Texto: "Grávidos" comemoram paternidade
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.