São Paulo, quinta-feira, 08 de novembro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PASQUALE CIPRO NETO

Consulesa, marani, peixe-mulher...

É famosa uma crônica de Rubem Braga em que o mestre trata de algumas preciosidades impingidas à goela de nossos estudantes. "Nascer no Cairo, ser fêmea de cupim" é o nome do delicioso texto.
"O leitor que responder "não sei" a todas essas perguntas não passará provavelmente em nenhuma prova de português de nenhum concurso oficial", sentencia Braga nessa crônica, escrita em 1959.
Felizmente, nos vestibulares mais importantes do país a prova de português mudou -para melhor. Tenta-se avaliar a capacidade do aluno de lidar com a língua culta, sem levar em conta "uma série de alçapões e adivinhas", como diz Rubem Braga.
Em muitos dos concursos oficiais para cargos públicos, no entanto, a coisa não mudou. Há algum tempo, a prova de português de um processo de seleção de oficiais de Justiça pediu o feminino de "peixe-boi". Como se sabe, peixes-bois (ou "peixes-boi"? - tanto faz) são malandros contumazes e, por isso, vivem às voltas com a lei. O pobre oficial de Justiça tentará várias vezes entregar a intimação ao meliante, que, obviamente, incumbirá sua pobre mulher -dona peixa-vaca- de despachar o indesejado.
"Vários problemas e algumas mulheres já me tiraram o sono, mas não o feminino de cupim", diz Braga. Se você já começou a perder o sagrado sono que dormiria esta noite, privo-o da privação. Digo-lhe logo que o feminino de "peixe-boi" é "peixe-mulher". Mas, por favor, não me pergunte por quê. Pergunte ao examinador que teve a genial idéia de incluir isso numa prova cujo objetivo é selecionar oficiais de Justiça.
Se já dei o feminino de peixe-boi, não me custa dizer que quem nasce no Cairo é "cairota", bela palavra que você talvez jamais use. O feminino de cupim? Já não estamos indo muito longe? Está bom, eu digo: não sei. Nem eu, nem Rubem Braga. Há quem diga que é "arará", mas que importância isso tem, afinal?
Durante a "caça aos marajás", embuste midiático protagonizado pelo ex-presidente Fernando C. de Mello, quem é que se lembrou de procurar o feminino de "marajá"? Esse termo vem do sânscrito e significa "título dos príncipes ou potentados da Índia". O feminino é "marani" (oxítona), mas naqueles dias não faltaram mulheres identificadas como "marajás do serviço público".
Bem, entre gentílicos e femininos exóticos, chegamos ao busílis deste texto: o feminino de "cônsul". Depois dos atentados de 11 de setembro, a representante diplomática dos Estados Unidos em São Paulo protagonizou um embate linguístico com a imprensa. Recusando o tratamento de "consulesa", a consulesa americana insiste em ser chamada de "cônsul" ("a cônsul"), denominação adotada pelo Itamaraty em alguns de seus documentos.
Peço licença a mestre Braga para mais duas palavras sobre inutilidades linguísticas. Com todo o respeito, excelentíssima consulesa, nossas dicionárias e nossa Vocabulária Ortográfica oficial dizem que o feminino de "cônsul" é "consulesa", seja para a mulher de cônsul, seja para a representante diplomática. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras E-mail - inculta@uol.com.br


Texto Anterior: Alckmin aprova lei que pune discriminação
Próximo Texto: Trânsito: Rua da Vila Mariana passa a ter mão única
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.